ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:58:58

logoajn1

O inc. VIII, do art. 10, da Lei 8.429/92: as dúvidas

Na nova redação da Lei 14.230/2021, fruto da Lei 8.429/1992, reside a preocupação do legislador em cobrir lacunas, no que é exemplo o art. 10, a cuidar dos atos administrativos que causam prejuízo ao Erário. Por três vezes, – caput do art. 10, inc. VIII e § 1º, – o texto inovou-se com acréscimo da expressão perda patrimonial efetiva, para substituir, respectivamente, o dispositivo onde antes era só perda patrimonial [art. 10], acrescentando-a no seu final, a título de exigência na sua concretação [inc. VIII]. No § 1º, idem, se fez presente.
Há lógica. Se o art. 10 cuida de atos que causam prejuízo ao Erário, natural que esse prejuízo, nos dispositivos apontados, tenha existido. Eis a razão da expressão aludida, evitando-se – e aí se encontra a porta de entrada do labirinto onde morava Minotauro, morto por Teseu –, evitando-se, assim, a alusão à perda patrimonial ficta ou presumida, tão comum em decisões a respeito da matéria, especificamente no inc. VIII, quando, malgrado o processo licitatório ter sido industrializado, ou melhor, fraudado, o convênio era atendido, o serviço, plenamente realizado, inexistente o superfaturamento do preço ofertado.
Ademais, o § 1º [do art. 10] abre uma janela excluindo da condição de improbidade os casos em que a inobservância de formalidades legais ou regulamentares não implicar perda patrimonial efetiva, daí não ensejar imposição de ressarcimento, vedado assim o enriquecimento sem causa dos entes públicos aludidos no art. 1º. Dito parágrafo, em verdade se apresenta implicitamente como um complemento do inc. VIII, de modo que o ato atacado, sendo fruto de inobservância de formalidades legais ou regulamentares, não implicando em perda patrimonial efetiva, fecha as portas para o réu da demanda ser obrigado a ressarcir as possíveis perdas.
Sedimenta-se a presença, por três vezes, da perda patrimonial efetiva, na Seção II, como forma de caracterizar os atos ímprobos que causam prejuízo ao Erário.
Do inc. VIII, contudo, resta a dúvida acerca do momento histórico em que a perda patrimonial efetiva se concreta e de como esta se manifesta. Em sessão recente, dia 25 de setembro, na ampliada da quarta turma com a presença de dois membros da segunda turma, meu entendimento, a respeito, restou derrotado. Defendi, como defendo, que o tipo do inc. VIII abarca tão só a realização do processo licitatório – era o caso -, não indo além para envolver também a execução dos serviços objetos da licitação – seja por leilão, seja por tomada de preços -, e respectivos pagamentos, execução agora sob os cuidados de outra equipe do ente público, terminando na homologação do processo licitatório o trabalho da comissão de licitação.
Ora, o art. 10 traz em seu caput o conceito geral do ato ali focado, como a ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, fazendo, então, com o apoio do termo notadamente, aponte atos específicos, tarefa que se farta de vinte e um parágrafos a esmiuçar atos sempre genéricos, observando-se que, entre todos, apenas o inc. VIII exige a perda patrimonial efetiva. Nos demais, a perda patrimonial efetiva se dilui no próprio tipo, sem necessidade de alusão alguma.
O inc. VIII abrange tão só o processo licitatório frustrado, ou a dispensa indevida, ambos, seja um, seja o outro, em afronta a norma, e, então, desse caminho trilhado a consequência imediata na perda patrimonial efetiva, na escolha do vencedor, em situações possíveis de ocorrer, entre as quais, a título de interrogação, apontamos: oferta de preço superior ao de mercado, não ter ocorrido a publicidade exigida, a errada escolha do procedimento tomado [leilão/tomada de preços], prestigiar empresas de pessoas ligadas a delegados do ente público, inobservância das formalidades aplicáveis à espécie, e outros fatores afins. Nasce a dúvida. Fiquei vencido. O concreto – e aí o porco começa a torcer o rabo – é que a perda patrimonial traga o carimbo da efetividade, extraindo-se do procedimento escolhido o fel, concreto e real, tudo para diferenciar da perda patrimonial ficta ou presumida, tão referida em julgados passados, na leitura que se fazia na vigência do texto primitivo. Não é tão simples porque, até a homologação, não se trabalha com numerário efetivo, na dicção do texto de hoje.
Se o inc. VIII está em jogo, tudo principia e finda no processo licitatório adotado ou na sua dispensa, não indo além da homologação do resultado. Quiçá o entendimento contrário seja fruto do fato de que, em geral, na redação originária, a realização completa do serviço funcionava como uma espécie de atenuante, motivando a aplicação apenas da pena de multa, em pequeno valor, pena meramente pedagógica.
A perda patrimonial efetiva fica como dúvida, a desafiar abordagem vindoura, no desafio de perceber não ser norma sem sentido prático, só para inglês ver. Voltaremos à temática.

Vladimir Souza Carvalho, é magistrado – membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.