O negacionismo científico e as práticas políticas antissistema, voltadas para ruptura com as instituições democráticas, causaram no mundo inteiro e particularmente no Brasil males muito profundos, cujos efeitos ainda precisam ser contidos e cujas presenças articuladas ainda devem nos manter em estado de alerta permanente para prevenir o seu retorno.
Com efeito, a pandemia do novo coronavírus e a sua péssima e criminosa gestão governamental (com boicotes às medidas de distanciamento social, atraso injustificado na aquisição de vacinas a partir do momento em que estiveram disponíveis, entre outras situações muito bem apontadas na “CPI da Pandemia”) conduziram ao colapso nacional do sistema de saúde e à maior tragédia sanitária de nossa história.
Tudo isso caminhou em paralelo à escalada extremista, que manteve a tensão permanente e a ameaça de ruptura democrática que contou com ensaios no 7 de setembro de 2021, na diplomação pelo TSE do Presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva e culminou com o vandalismo criminoso e golpista na sede dos três Poderes em Brasília no 8 de janeiro de 2023.
Existem, todavia, outros efeitos muito perversos decorrentes de todo esse contexto.
No campo da defesa da democracia e de suas instituições contra as ameaças golpistas, mas também no combate ao negacionismo científico e à defesa da saúde e da vida no contexto da pandemia, agigantou-se o papel do Supremo Tribunal Federal, que foi a instituição que não se omitiu e, dentro do possível, conseguiu conter os arroubos autoritários, golpistas e negacionistas do Governo Federal conduzido por Jair Bolsonaro, isso a despeito da omissão e mesmo complacência do Procurador-Geral da República e do Congresso Nacional.
Essa atuação do STF (e também do TSE) se revelou ativa desde o quanto produzido nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, até a condução da radicalizada campanha eleitoral do segundo turno de 2022, em que aumentaram exponencialmente as propagações de desinformação eleitoral, com ameaças ao regime democrático, ao sistema eleitoral e ao sistema de votação/apuração pelas urnas eletrônicas bem como as práticas de abuso de poder político e econômico que campearam, a despeito dos esforços de todo o sistema de justiça eleitoral, convocada a novos desafios. O STF, o TSE e especialmente o seu Presidente, Ministro Alexandre de Moraes, foram decisivos para evitar o mal maior, preservar as instituições democráticas e garantir a normalidade institucional com o respeito ao voto soberano do eleitor.
No que se refere ao negacionismo científico e a sua adoção como política institucional de gestão governamental da pandemia, este encontrou na comunidade científica de um modo geral uma resistência intensa, contando com espaços importantes nos meios de comunicação social e revelando atuação destacada de divulgadores científicos que se projetaram nas redes sociais e em sua militância científica, servindo como fundamental rede de educação da sociedade, de combate à desinformação e mesmo de preenchimento de lacunas informativas do Ministério da Saúde.
Isso fez com que todos nós aplaudíssemos a atuação firme do STF e do TSE, bem como a atuação contagiante dos cientistas em defesa da ciência e contra o negacionismo que fora adotado como estratégia de atuação governamental.
Ao mesmo tempo, todavia, começamos a evitar tecer críticas para aspectos que podem e devem ser criticados no comportamento dessas instituições (o que é próprio de um Estado Democrático de Direito em sociedades plurais e diversas), como o recorrente desdém e desprezo do STF para com os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores e o pontual abuso nas práticas investigativas/processuais penais dos crimes que foram cometidos (a exemplo da adoção de estratégias abusivas já antes utilizadas, por exemplo, na Operação Lava Jato, como prisões processuais indevidas e o STF se tornando juízo universal competente para investigação de qualquer fato enquadrado como conexo aos atos antidemocráticos, mesmo não havendo autoridade investigada com foro especial por prerrogativa de função para ser ali investigada), tudo para não dar margem e discurso para os extremistas, golpistas e negacionistas.
Assim, o TSE e especialmente o STF passam a ter uma espécie de imunidade a críticas e questionamentos públicos mais efetivos, afinal, o STF foi e é garantidor da manutenção do Estado Democrático de Direito e não podemos fragilizá-lo pois as ameaças não estão totalmente debeladas.
E a entusiasmada defesa da ciência, tão importante durante a pandemia, reacendeu o discurso da superioridade elitizada do conhecimento científico – que desconsidera a importância e o valor de outros tipos de conhecimento – e mesmo do desprezo a ciências que não são estruturadas em métodos que garantem a testagem das hipóteses em laboratório. Assim, ciências humanas e sociais são tratadas como subciência ou pseudociência, resgatando um pensamento positivista purista que já estava relativamente superado no debate público. Essa postura foi percebida com todo a polêmica desencadeada em torno do lançamento do livro “Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, de Carlos Orsi e Natalia Pasternak, esta última que tanto se destacara como divulgadora científica no combate ao negacionismo naqueles duros anos de 2020 e 2021.
São esses os males não percebidos ou não tão evidentes dessa tragédia que se abateu entre nós com o golpismo e o negacionismo: para resistir, elevamos as instituições e estratégias responsáveis pelo êxito a patamares dogmáticos, inquestionáveis, o que é a porta aberta para que outros e novos abusos, mais adiante, venham a ocorrer, “legitimados”, sem reflexão crítica e sem questionamento social.