ARACAJU/SE, 8 de maio de 2024 , 15:48:11

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Retrato em preto e branco

Sílvio Almeida, jurista e filósofo brasileiro, é autor de “Racismo estrutural”, obra essencial para a interpretação da sociedade brasileira, a partir de um elemento fundante de sua conformação: o racismo. Nesse livro, Almeida distingue a leitura individualista, institucionalista e estruturalista do racismo. Individualista é a percepção de que não haveria sociedades ou instituições racistas, mas apenas indivíduos assim, que agem isoladamente ou em grupo. O direito, segundo essa concepção, seria o remédio, punindo as ocorrências discriminatórias. Mas, lembra o autor, as maiores desgraças produzidas pelo racismo brotaram sob o abrigo da legalidade – a escravidão, por exemplo. A visão institucional vai além. Afirma que o racismo é resultado da dinâmica das instituições, que absorvem e normalizam a discriminação, garantindo a preservação da hegemonia de determinado grupo. Reconhecendo esse olhar como ainda insuficiente, Almeida avança para a leitura estrutural do fenômeno, que pode ser resumida da seguinte forma: as instituições são racistas porque a sociedade é racista.

No caso brasileiro, isso é autoevidente. A distribuição da riqueza, do conhecimento e do poder é claramente desigual do ponto de vista racial. E o direito, mesmo quando se pretende neutro, colabora para reafirmar essas injustiças, organizando práticas discriminatórias, às vezes manifestamente contra a lei, mas chanceladas pelos agentes do sistema que a opera.

Para ilustrar, vale referir o caso de Danilo Felix Vicente de Oliveira, jovem preto preso em Niterói, em 6 de agosto passado. A vítima de um roubo foi até a delegacia. Lá, apresentada a fotos diversas, reconheceu um suspeito. No dia seguinte, chamada pela polícia, a ela foram exibidos novos retratos. Nesse momento, mudou de ideia e reconheceu Danilo, quando confrontada a uma imagem dele, de 2017, na qual tinha cabelos cortados rentes e usava bigode. Ocorre que, em 2 julho de 2020, quando o crime foi praticado, ele estava com cabelos em tranças e usava cavanhaque. Com base nessa associação errônea, Danilo foi aprisionado preventivamente. Apesar dos pleitos da defesa, sua prisão foi endossada pelo Ministério Público e autorizada pelo Judiciário, até que, na audiência, a vítima não o reconheceu. Foram 55 dias de cárcere.

Outro episódio. O músico preto Luiz Carlos da Costa Justino foi preso em 2 de setembro último, em uma blitz, também em Niterói, acusado de um roubo ocorrido em 2017. Ele foi reconhecido fotograficamente pela vítima e teve contra si expedido um mandado de prisão que ficou três anos aguardando cumprimento. Entretanto, no momento do assalto, ele estava tocando violoncelo em uma padaria, onde se apresenta aos domingos de manhã. Foram apresentados contratos, testemunhos e vídeos. O álibi era irrefutável. Mas Luiz Carlos ficou encarcerado por cinco dias e chegou a dividir a cela com mais 82 (!) pessoas, até ser solto.

A identificação, em ambos os casos, foi ilegal. Afrontou o texto expresso do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). Esse dispositivo, que vigora desde 1942, diz que, quando houver necessidade de reconhecimento de pessoa, quem tiver de fazê-lo descreverá quem deve ser reconhecido. Após isso, a pessoa a ser reconhecida, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, a fim de ser eventualmente apontada. Caso haja receio, a autoridade providenciará que o identificante não seja visto por quem está sendo identificado. Tudo isso deve ser feito diante de duas testemunhas.

Apesar da clareza das regras, elas não costumavam ser implementadas. O método fotográfico de identificação era manejado com total liberalidade no procedimento criminal. A despeito dos protestos das defesas, os tribunais, majoritariamente, diziam não enxergar prejuízo ou nulidade nesse tipo de ato. A lei, portanto, era subvalorizada. Como resultado, grupos estigmatizados, especialmente pretos e periféricos, passavam a ser objetos reiterados dos erros policiais, ministeriais e judiciários.

Em 27 de outubro passado, um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relativo a um caso de Santa Catarina, foi bastante comemorado. A 6.ª Turma do STJ, em decisão relatada pelo ministro Rogério Schietti Cruz, entendeu que não é possível que o reconhecimento de acusados seja feito, apenas, pelo meio fotográfico, e que, muito menos, essa identificação seja suficiente para gerar condenações (Habeas Corpus 598.886/SC). Foi feita a expressa superação de precedentes, inclusive do próprio relator, que diziam que o procedimento do art. 226 do CPP era “mera recomendação legal”.

Foi uma importante decisão garantista e antirracista. Garantista porque afirmou o império de uma proteção legal, válida para todos. Antirracista porque, como pretos são as vítimas mais frequentes de erros de reconhecimento, bloqueou uma das trilhas do sistema punitivo racial. Faltam outras.