ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 6:44:50

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Urge desconstruir ‘Amélias’

Submetida milenarmente ao poder do pai ou do marido, a mulher vem conquistando sua libertação gradativa da condição de subalternidade e percorrendo importante caminho em direção à igualdade plena, especialmente a partir da Constituição de 1988 e de normativas internacionais ratificadas pelo Brasil. A igualdade entre homem e mulher representa uma revolução do nosso tempo, construída com a luta de milhares de mulheres que ousaram sair de suas “caixinhas culturais”, contando também com a parceria de homens que compreendem que não se pode mais tolerar exclusões, discriminações e violências de gênero.

As raízes que estruturam a discriminação de gênero remontam à história do direito e da humanidade e sua mudança implica grandes desafios, pois requer reconstrução de valores, políticas públicas consistentes, e, principalmente, sensibilidade de todos os grupos sociais que tenham consciência política de sua humanidade e pretendam uma sociedade mais próxima do justo e da solidariedade, respaldada no respeito à dignidade humana, princípio fundamental do direito brasileiro.

No ordenamento jurídico brasileiro, o reconhecimento da igualdade entre homem e mulher, a prescrição de medidas para prevenir e combater a violência de gênero, a determinação de uma educação que possa expurgar padrões culturais sexistas.

Em várias partes do Brasil e em vários setores, entretanto, depara-se com o descompasso entre a proclamação de direitos de igualdade e os espaços socialmente discriminatórios em razão de gênero, em suas intercessões culturais de etnias/raças, classe, faixa etária etc. A mulher ‘descobriu’ o espaço público, destacando-se como profissional qualificada em várias áreas. Entretanto, muitos homens não descobriram a casa. Os trabalhos domésticos, assumidos preponderantemente pelas mulheres, têm dificultado a demonstração do potencial feminino no mercado de trabalho ou na participação política. A violência doméstica e familiar contra a mulher, deixando de ser matéria privada, adquire maior visibilidade no presente. Assim, a concretização da igualdade não pode ser esquecida. Bobbio já alertava que: (…) “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los [..] qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”

Como dar efetividade a normas vigentes e válidas que ainda são constantemente violadas?  Se a família é base da sociedade que se proclama democrática, como enuncia o artigo a Constituição da República, deve constituir-se como lugar privilegiado de relações equitativas entre homem e mulher. Relembre-se o que dizia B. Lasker: “há uma enorme diferença entre aceitar o ideal democrático para a sociedade como um todo e estar disposto a aceitá-lo como um guia para a conduta pessoal diária de cada um. 

Mudanças culturais passam necessariamente pela desconstrução de estereótipos e preconceitos através de políticas públicas, que devem ser efetivamente implantadas e dependem do envolvimento de toda a sociedade, que deve cobrar das autoridades governamentais sua implementação, acompanhando e fiscalizando seus resultados.  Destaque-se o papel de todas as pessoas comprometidas com a defesa não só do estado democrático, mas também, da sociedade democrática, em uma ação de celebrar e vigiar, traçar estratégias para denunciar, avançar e monitorar, em um processo dinâmico, de articulação entre atores da sociedade civil e entre estes e o Estado, em uma permanente mobilização, no sentido de que direitos e princípios assegurados em leis se concretizem no viver social.

Foi longo o caminho percorrido pela mulher em busca de sua libertação da condição de subalternidade. Entretanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Vamos celebrar os avanços, sim, mas é necessário vigiar e traçar estratégias para monitorar os caminhos civilizatórios que estamos percorrendo, onde se constatam permanências e, muitas vezes recuos, valendo repetir a advertência de Manuel Castells, tão apropriada para os dias atuais:(…) na História não há direcionamento predeterminado. Não estamos marchando em triunfo pelas avenidas da nossa liberação[…] A restauração fundamentalista, colocando novamente o patriarcalismo sob a proteção da lei divina, pode muito bem reverter o processo.