O Brasil dos indicadores macroeconômicos mostra um cenário em aparente melhora, com inflação em desaceleração e números de endividamento dando sinais de recuo nas estatísticas mais recentes.
Quando o foco se desloca para o dia a dia das famílias, porém, a fotografia é bem menos confortável: conta de luz mais cara, cartão de crédito usado como complemento de renda e um nível de inadimplência ainda elevado indicam que a sensação de aperto permanece.
Segundo levantamento do Serasa, 80.436.532 brasileiros estão endividados, com 321 milhões de dívidas ativas que somam R$ 509 bilhões em todo o país.
O valor médio devido por pessoa ultrapassa R$ 6,3 mil, enquanto cada dívida individual gira em torno de R$ 1.584,96, o que revela um quadro pulverizado, mas persistente de compromissos em atraso.
O endividamento tem recorte geracional e de gênero: 33,6% dos inadimplentes têm entre 26 e 40 anos – faixa etária em que renda e responsabilidades tendem a crescer – e há leve predominância feminina, com 50,5% das dívidas no nome de mulheres, contra 49,5% de homens.
Independentemente da idade ou do gênero, a maior parte das dívidas se concentra nas faixas de menor renda, onde qualquer desequilíbrio é suficiente para levar o orçamento ao vermelho, segundo dados da CNC (Confederação Nacional do Comércio).
Entre famílias com até três salários mínimos, 82,5% estão endividadas; na faixa de três a cinco salários, o índice é de 81,1%; ainda segundo dados da CNC.
No agregado, o indicador recuou para 79,2% em novembro, registrando a primeira queda após nove meses de alta, mas ainda acima do patamar observado um ano antes, o que indica um quadro de melhora lenta e ainda frágil.
O alívio estatístico, no entanto, não se converte em folga efetiva no orçamento doméstico. Contas básicas mais caras e o uso do crédito para despesas correntes mostram que a margem de manobra das famílias continua estreita, com pouco espaço para imprevistos ou consumo de bens duráveis.
Cartão vira renda e bola de neve
Quando o aperto financeiro vira desespero, muitas famílias deixam de usar o cartão de crédito como mero meio de pagamento. Fazem dele um complemento de renda.
Luiz Fernando Mamede, 23 anos, autônomo, resume a mudança de comportamento: “Cartão de crédito acaba que hoje em dia é uma bola de neve. A gente usava para comprar roupa, algo para um lazer, e hoje usa para comprar alimento no dia a dia, porque o dinheiro do final do mês não supre todas as contas”, afirmou.
O jovem conta com orgulho ter financiado o primeiro apartamento, mas logo esboça um sorriso sarcástico: “somando os juros, pago quase três”. Não se trata de exagero retórico: em um ambiente de juros altos, esse é o preço de estender demais o prazo de pagamento.
A Selic permanece em 15% ao ano, e mesmo com inflação acumulada em 4,4% em 12 meses, itens essenciais seguem pressionando o orçamento, com destaque para artigos de residência, alimentação e bebidas, que sobem acima da média geral.
Com isso, o espaço para amortizar dívidas diminui, e o crédito caro passa a consumir fatias crescentes da renda.
Dados do Banco Central indicam que 28,8% da renda das famílias está comprometida com dívidas, o maior nível da série histórica. Desse total, 10,23% da renda é destinada exclusivamente ao pagamento de juros, recursos que deixam de financiar alimentação, transporte, educação ou qualquer forma de consumo que gere bem-estar ou investimento para o futuro.
Mesmo quem empreende sente o peso do aperto. Vanda Cristina Pereira, 40 anos, microempresária e mãe de seis filhos, conta que manter o negócio e as contas do mês em dia exige cálculo diário.
“Como chefe, líder, a gente tem famílias por trás da nossa família. E a gente tem que honrar essas famílias. E às vezes os impostos são tão grandes, as contas são tão grandes, as dificuldades são tão grandes, que acaba no final, recebendo muito menos do que o nosso próprio funcionário”, resume a microempresária.
Na prática, o limite do cartão vira linha de sobrevivência: “Muitas vezes você tem que estar ali pagando o limite, porque senão você não consegue sobreviver, pagar as contas, pelo menos ficar no empate”, frisou. Para ela, renegociar virou rotina, e o limite do cartão é a última fronteira antes de o atraso se transformar em inadimplência.
Renegociação com alcance limitado
Para o pesquisador Flávio Ataliba, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), “o cartão de crédito tem sido aquele instrumento mais utilizado pelas famílias para se endividarem. Praticamente mais de 90% das dívidas acontecem com o cartão de crédito”.
Ele destaca que o instrumento democratizou o acesso ao crédito, mas também criou uma porta direta para o endividamento quando passa a funcionar como “renda contínua”.
“As famílias utilizam o cartão de crédito para comprar alimentos. […] Você vai precisar todo mês comprar alimento e parcela essa fatura em 3 ou 4 vezes. Mas no próximo mês você vai precisar também comprar alimentos, mas você tem também no mês seguinte já a parcela da compra anterior, que acaba se acumulando […] então chega um ponto que o seu limite no cartão de crédito acaba ficando estourado, não consegue pagar nem o mínimo”, destacou.
Quando essa bola de neve se solta, o rombo se aprofunda, especialmente se a família não tiver qualquer reserva de emergência.
Ainda segundo o pesquisador, qualquer choque — perda de renda, doença, um gasto inesperado — empurra de novo a pessoa para o cartão, que funciona como amortecedor de curto prazo.
Sem conseguir pagar a fatura cheia, entra no rotativo, faixa em que os juros passam de 400% ao ano, multiplicando rapidamente o valor devido e tornando a saída cada vez mais difícil.
Mesmo programas de renegociação de grande escala, como o Desenrola, não são capazes de quebrar esse ciclo sozinhos.
“O programa foi um alívio temporário. Para a primeira faixa de renda houve sucesso, mas para faixas mais altas não foi tanto. Um programa como o Desenrola, quando termina, apenas minimiza o problema. A tendência estrutural permanece. É como se precisássemos de um Desenrola permanente para recompor a capacidade das famílias de realizar despesas”, detalha Ataliba.
A CNC avalia que iniciativas de renegociação são importantes, mas têm alcance limitado. Fabio Bentes, economista-chefe da entidade, afirma que programas como o Desenrola e mutirões “fazem parte de uma microagenda que provoca efeitos positivos sobre o orçamento das famílias, diminui o grau de endividamento e de inadimplência, mas não solucionam o problema”.
Para ele, o ciclo só se quebra com crédito mais barato e previsibilidade de longo prazo. “Para retomar o crédito ao consumo de forma vigorosa, é preciso um período relativamente longo de redução dos juros. A inadimplência menor ajuda no longo prazo, mas o processo é gradual”, aponta o economista.
Seguro pouco conhecido como rede de proteção
Quando não há margem financeira, um imprevisto pode transformar uma conta administrável em atraso e, depois, em negativação.
É nesse cenário que surge um instrumento pouco difundido no debate público: seguros ligados ao crédito, em especial o seguro prestamista e o seguro de pessoas.
A presidente da Comissão de Risco da Fenaprevi (Federação Nacional de Previdência Privada e Vida), Ana Flávia Ribeiro, reforça que o seguro ainda é subutilizado no país.
“Hoje, no Brasil, em torno de 6% do PIB corresponde a operações de seguro, enquanto em outros países com mais tradição apresentam esse índice lá em torno de 10% a 12%. Então a gente vê que o mercado de seguros tem bastante para avançar, bastante para cresce”, disse.
Entre os produtos, ela destaca o prestamista, um dos tipos de seguro mais populares, em boa parte das vezes vinculado diretamente a operações de empréstimo, crédito ou financiamento.
Geralmente, o seguro prestamista acompanha ou é contratado junto com operações de crédito e financiamento, sendo obrigatório no financiamento habitacional e facultativo nas demais modalidades.
Segundo Ana Flávia, essa modalidade “pode garantir a quitação integral da operação de crédito ou amortizar parte dela em caso de desemprego, perda de renda, impossibilidade de trabalhar, acidente, doença ou morte”.
Ela ressalta que o acesso não está restrito a trabalhadores com carteira assinada: autônomos, microempreendedores e pequenas e médias empresas também podem contratar esse tipo de seguro como parte de um planejamento financeiro mais amplo.
Ao funcionar como uma espécie de “airbag” para o orçamento, o prestamista reduz a chance de uma crise pontual se transformar em inadimplência definitiva.
Os dados mais recentes confirmam a demanda crescente por proteção financeira. O setor de seguros de pessoas movimentou R$ 6,8 bilhões em prêmios somente em agosto de 2025 e R$ 51,3 bilhões no acumulado até agosto, segundo levantamento da Fenaprevi com base em informações da Susep.
Em sinistros, foram R$ 1,5 bilhão pagos no mês e R$ 11,4 bilhões no acumulado anual, alta de 6,6% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O seguro prestamista responde por 49% dos prêmios de Seguro de Pessoas e por 53% das indenizações pagas, o que mostra o peso desse produto específico dentro do segmento.
Ainda assim, o avanço do setor convive com um quadro geral de endividamento elevado, sugerindo que o seguro funciona como amortecedor, mas não como solução para a desigualdade de renda e o crédito caro.
Entre estatística e vida real
O contraste entre a desaceleração da inflação, o recuo pontual do endividamento e a persistência da inadimplência resume o Brasil dos dados e o Brasil do bolso.
De um lado, indicadores mostram melhora gradual; de outro, relatos como os de Luiz Fernando e Vanda evidenciam que a sensação de sufoco continua, especialmente entre os mais pobres e os pequenos empreendedores.
Especialistas ouvidos pelo CNN Money apontam que programas de renegociação, planejamento financeiro e instrumentos como o seguro prestamista ajudam a amortecer o impacto de choques.
Mas sem juros mais baixos por um período prolongado, aumento consistente da renda e educação financeira mais disseminada, a tendência é que o cartão continue sendo, ao mesmo tempo, porta de entrada para o consumo e principal canal de endividamento das famílias.
Para quem já sente o orçamento estrangulado pelo cartão, especialistas em finanças pessoais defendem uma combinação de diagnóstico rápido e troca de dívidas caras por modalidades mais baratas. A planejadora financeira do C6 Bank, Larissa Frias, elenca passos básicos para retomar o controle.
- Observar se o limite é maior que a renda. Isso facilita o descontrole: sem acompanhamento, a fatura cresce mais rápido do que o orçamento permite;
- O rotativo é a dívida mais cara do mercado: parcelar o mínimo ou rolar saldo transforma rapidamente um atraso em “bola de neve”;
- Renegociar é a saída quando a dívida já saiu do controle: modalidades de médio e longo prazo têm juros mais baixos do que o rotativo;
- Trocar dívida cara por dívida barata deve ser o objetivo imediato de quem está no vermelho;
- Juros podem cair, mas ainda estão altos: com a perspectiva de redução da Selic, instituições podem oferecer condições melhores — é hora de comparar propostas;
- Fazer um pente fino no orçamento é essencial: especialmente nos gastos variáveis, que são os que mais estouram o limite sem a pessoa perceber;
- Cuidado com compras parceladas: priorize parcelamento apenas para itens duráveis; parcelar despesas do dia a dia gera acúmulo de parcelas e perda de controle;
- Construir uma reserva de emergência — mesmo pequena — ajuda a evitar o retorno ao endividamento quando surge um imprevisto;
- Planejamento é o antídoto contra a reincidência: quem entende entradas, saídas e limites de gasto reduz a chance de voltar ao cartão como renda.
Fonte: CNN Brasil





