ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 19:10:12

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8 de janeiro: a tentativa de golpe de Estado via Garantia da Lei e da Ordem

Por ocasião do aniversário de um ano da intentona golpista de 8 de janeiro, importantes documentários dos meios de comunicação reavivaram a memória e chamaram atenção para o pouco que faltou para que viesse a se concretizar o golpe de Estado e uma intervenção militar, com clássica ruptura democrática armada.

Em todos esses documentários, a indicação da clara estratégia dos golpistas: forçar o acionamento da GLO (Garantia da Lei e da Ordem) como instrumento jurídico que, em tese, serviria para pôr fim à baderna, ao vandalismo e às invasões violentas com depredação do patrimônio público dos três poderes, mas que, na prática, serviria para entregar o controle do poder aos militares e às Forças Armadas e com isso abrir o caminho para a insurreição golpista.

O tirocínio político de quem detinha o poder de decidir, aliado à precisa orientação jurídica, fez com que fosse tomada a acerta decisão de rejeitar enfaticamente o acionamento da GLO e ser decretada intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal para debelar a intentona golpista, pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública e restabelecer a normalidade democrática institucional.

Nesse contexto, fica a reflexão – que os documentários instigam – acerca da utilização das Forças Armadas na segurança pública.

Com efeito, desvirtuando-se a sua principal destinação constitucional, banalizando-se o seu emprego (que, nessa área, deveria ser subsidiário), as Forças Armadas têm sido chamadas a atuar na segurança pública interna, seja, por exemplo, no combate à criminalidade no Rio de Janeiro, seja para reprimir legítimos e pacíficos protestos próprios de sociedades plurais e democráticas.

Trata-se de medida sem respaldo na Constituição. De acordo com o Art. 142, as Forças Armadas destinam-se “à defesa da Pátria” e “à garantia dos poderes constitucionais”. Isso quer dizer que o papel constitucional das Forças Armadas é a defesa da soberania nacional, na perspectiva da proteção do nosso território, base essencial sobre a qual se assenta todo o poder do Estado Brasileiro.

O mesmo Art. 142, é verdade, também prevê que as Forças Armadas se destinam à “garantia da lei e da ordem”. Essa previsão normativa, contudo, não deve ser interpretada isoladamente, mas dentro do contexto maior em que a Constituição da República trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas (Título V) e, nele, trata em capítulo especial (Capítulo III), da Segurança Pública, como dever do Estado e responsabilidade de todos, “para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (Art. 144), por meio dos órgãos que explicita (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares, polícias penais). A garantia da ordem pública, portanto, não é missão das Forças Armadas, mas sim dos órgãos constitucionais da segurança pública, com atribuições, competências e limites bem delineados nos parágrafos do Art. 144.

Por determinação constitucional, essa atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem é meramente subsidiária; na mesma toada é a disposição da Lei Complementar n° 97/1999 ao estabelecer, em seu Art. 15, § 2°, que “A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.”.

Em se admitindo a incompetência e a falta de condições conjunturais desses órgãos para a garantia da ordem, a Constituição também estabelece, no mesmo Título em que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, os mecanismos garantidores dessa ordem pública. É o que se denomina, na doutrina, de “Sistema Constitucional de Crises”.

No sistema constitucional em vigor, são mecanismos do sistema constitucional de crises o “estado de defesa” e o “estado de sítio”. O estado de defesa pode ser decretado pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho da Defesa Nacional, para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza (Art. 136). E o Estado de Sítio pode ser decretado pelo Presidente da República (ouvidos os mesmos Conselhos), após autorização do Congresso Nacional, nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa e declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

O sistema jurídico-constitucional prevê, sim, adoção de medidas excepcionais destinadas ao resgate da normalidade institucional, ameaçada por situações que a abalem.

Todavia, tais medidas devem ser adotadas nos termos constitucionais, sob pena de configuração de um estado de exceção não autorizado pela Constituição, com restrições não admitidas a direitos e garantias fundamentais, o que representa grave atentado ao Estado Democrático de Direito.

Acionar as Forças Armadas via GLO como prática incorporada ao cotidiano das ações estatais relacionadas à segurança pública, seja para reprimir protestos legítimos, seja para combater a criminalidade, é flertar perigosamente com brechas abertas para planos golpistas e com o retorno ao período de ditadura militar, como os episódios dos últimos quatro anos e em especial do 8 de janeiro bem revelaram e do qual escapamos por tão pouco e, por isso mesmo, precisamos, sociedade e instituições, permanecer vigilantes.