ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 18:24:25

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A “CPI do MST” e a tentativa de criminalização de movimentos sociais

A Câmara dos Deputados, por iniciativa do Deputado Tenente Coronel Zucco (REPUBLICANOS/RS), criou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) destinada a investigar a atuação do grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do seu real propósito, assim como dos seus financiadores”.

Faremos inicialmente a análise do requerimento de criação dessa Comissão Parlamentar de Inquérito, para demonstrar que, tal como formulado, não preenche os pressupostos constitucionais autorizadores e, na sequência, analisar os desdobramentos jurídico-políticos do episódio.

A instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito é uma prerrogativa constitucional do Poder Legislativo (e, nele, da minoria parlamentar consistente em pelo menos um terço dos membros da Casa Legislativa) para o bom exercício da sua função típica fiscalizadora.

Com efeito, as CPI’s constituem instrumentos importantíssimos para o bom desempenho desse papel, tendo em vista que, criadas regularmente, possuem poderes de investigação “próprios das autoridades judiciais” (Art. 58, § 3° da Constituição Federal: “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”). A jurisprudência do STF já se firmou no sentido de que esses “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” são, na verdade, poderes “de instrução”, poderes de “produção de provas” próprios das autoridades judiciais, eis que as autoridades judiciais não possuem poderes de investigação.

E os requisitos constitucionais para a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito são três: a) requerimento de, no mínimo, 1/3 dos Deputados ou 1/3 dos Senadores, sendo que em se tratando de CPI mista, o requerimento deve ser subscrito por no mínimo 1/3 dos Deputados e 1/3 dos Senadores; b) que a CPI seja criada para apuração de fato determinado; c) prazo certo de funcionamento, renovável, sempre por prazo determinado (noutras palavras, é uma comissão temporária) [Tendo em vista que a CPI, por dispor dos poderes mencionados, pode vir a adotar medidas eventualmente restritivas de direitos fundamentais, não seria conveniente permitir a sua existência por tempo indeterminado].

No caso da “CPI do MST”, apenas dois desses requisitos foram atendidos: o requerimento de sua criação foi subscrito por um terço dos Deputados e o próprio requerimento já apontou o prazo certo de cento e vinte dias para o seu funcionamento.

Todavia, não foi preenchido o requisito de indicação do fato determinado (ou dos fatos determinados conexos) potencialmente criminoso a ser objeto de investigação.

O requerimento aponta, genericamente, o pedido de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de “investigar a atuação do grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do seu real propósito, assim como dos seus financiadores. Ora, atuação do MST, seu real propósito, assim como dos seus financiadores, não é fato determinado. Fato determinado é fato devidamente delimitado no tempo e no espaço, contextualizado.

Além disso, não foi apontada, em tese, a prática de qualquer crime que deva ser objeto de investigação. Qualquer investigação criminal, efetuada pela polícia, pelo Ministério Público e, também, pelo Parlamento (CPI), para não padecer de ausência de justa causa, deve ter suporte em crime ocorrido, como no caso da CPMI do 8 de janeiro (crimes de tentativa de golpe de estado, invasão dos prédios dos três Poderes, com vandalismo e depredação do patrimônio público, entre outros).

No ponto em que o requerimento deveria apontar o fato determinado ou fatos determinados conexos, potencialmente criminosos, isso não foi efetuado.

Criada essa CPI, a despeito da evidente falta de preenchimento desse seu pressuposto constitucional, estamos diante do funcionamento abusivo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que, valendo-se dos poderes instrutórios próprios das autoridades judiciais, pode promover verdadeira devassa sem qualquer base mínima indiciária para tanto no genérico e amplo espectro do exercício das atribuições por parte da atuação do MST.

E aqui entra em cena o problema das justificativas presentes no requerimento de criação dessa CPI. Nelas, o que se tem é claramente a tentativa de enquadrar as lutas do MST em prol da reforma agrária e da garantia de assentamento de trabalhadores rurais sem-terra, como determinado pela Constituição Federal, em práticas criminosas, engajando seus seguidores nesse discurso radicalizado.

Ao mesmo tempo, a minoria parlamentar que conseguiu fazer instalar e entrar em funcionamento essa CPI pretende disputar os holofotes e a repercussão dos fortes avanços e depoimentos prestados na CPI do 8 de janeiro, essa sim, que se presta à finalidade constitucional de investigar crimes e encaminhar suas conclusões ao Ministério Público.

Que a maioria da “CPI do MST” consiga impedir o predomínio da narrativa tentada e fazer reafirmar em debate público que movimentos associativos que lutam por seus direitos constitucionais não são criminosos mas sim exercentes de franquias constitucionais como liberdade de associação, liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade de crítica, liberdade de protestar, enfim, liberdade de travar as lutas sociais inerentes ao pluralismo de uma sociedade complexa no Estado Democrático de Direito.