ARACAJU/SE, 18 de abril de 2024 , 23:21:15

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A estrangeira nociva

Em novembro de 1935, ocorreu a chamada Intentona Comunista. Rebeliões militares em Natal, Recife e no Rio de Janeiro pretendiam tomar o poder das mãos de Getúlio Vargas. O movimento fracassou rotundamente. Em 5 de março de 1936, Olga Gutmann Benário, cidadã alemã, foi presa no Brasil, acusada de participar desses atos, que afrontavam a Lei de Segurança Nacional de então. Ao ser capturada, declarou-se esposa de Luís Carlos Prestes e grávida dele, que também foi aprisionado. No cárcere, ao tempo em que corria o inquérito para apurar os crimes políticos ditos praticados por ela, iniciou-se um procedimento para sua expulsão do território nacional e entrega às autoridades alemãs.

A Lei de Segurança fora obra intelectual do Ministro da Justiça, Vicente Rao, em 1935, e fazia de qualquer contestação ao governo Vargas uma infração penal. Pouco após a prisão do casal Prestes, foi editado o Decreto 702/1936, também subscrito por Vargas e Rao, que excluía diversas garantias constitucionais previstas no artigo 113 da Constituição de 1934, dentre elas a possibilidade de apreciação de habeas corpus.

Em defesa de Olga foi constituído Heitor Lima, que redigiu uma das mais admiráveis peças jurídicas já concebidas no idioma de Camões. Ao invés de postular uma liberdade improvável, valeu-se do habeas corpus para pedir que ela ficasse presa. Protegia-a da expulsão e entrega ao governo nazista, que àquela altura já havia editado as infames Leis de Nuremberg, que retiravam dos judeus os direitos de cidadania. Olga era judia e comunista, sendo a morte um destino certo para ela em terras tedescas. O patrono anunciava que se a detida estava acusada de crimes praticados no Brasil, teria, em nome da soberania nacional, de responder aqui por seus atos. Além disso, era gestante de um brasileiro, sobre quem recairia castigo sem culpa.

No Habeas Corpus 26.155, de 1936, Olga foi tratada por “Maria Prestes”. O procedimento foi distribuído no Supremo Tribunal Federal – àquele tempo com o nome oficial de Corte Suprema – ao Ministro Bento de Faria. Seu primeiro despacho determinou que as custas fossem pagas, apesar do pedido de dispensa delas feito pelo advogado impetrante, que ressaltou a condição de miserabilidade da paciente (nome técnico que se dá àquele a quem se defende nesse tipo de ação). A resposta do defensor foi admirável: “Se a justiça masculina (…) tolhe a defesa a uma encarcerada sem recursos, não há de a história da civilização brasileira recolher em seus anais judiciários o registro desta nódoa: a condenação de uma mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O impetrante satisfará as despesas do processo.”

Em 17 de junho, veio a decisão. Seus termos são sumários e revelam o pouco interesse do tribunal em proteger uma mulher grávida e seu filho: “Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas-corpus impetrado pelo Dr. Heitor Lima em favor de Maria Prestes, que ora se encontra recolhida à Casa de Detenção, a fim de ser expulsa do território nacional, como perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do país: A Corte Suprema indeferindo, não somente a requisição dos autos do respectivo processo administrativo, como também o comparecimento da Paciente e bem assim a perícia medica a fim de constatar o seu alegado estado de gravidez, e Atendendo a que a mesma Paciente é estrangeira e a sua permanência no país compromete a segurança nacional, conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça; Atendendo a que, em casos tais não há como invocar a garantia constitucional do habeas corpus, à vista do disposto no art. 2º do decreto nº 702, de 21 de Março deste ano. Acorda, por maioria, não tomar conhecimento do pedido. Custas pelo impetrante.” Apesar de a decisão haver sido tomada por maioria, os três votos vencidos negavam o pedido em favor de Olga e do nascituro.

O ato teve consequências. O decreto de expulsão foi assinado por Vargas em 27 de agosto. Em 23 de setembro, a “estrangeira nociva” embarcou no vapor La Coruña. Deu à luz a Anita Leocádia na prisão de Barnimstrasse, em 27 de novembro. Sua filha, após o período de amamentação e de grande campanha internacional para tanto, foi entregue à avó paterna, em 21 de janeiro de 1938. Em 23 de abril de 1942, Olga foi morta em uma câmara de gás em Bernburg.

O Judiciário negou o pedido de gratuidade em um habeas corpus, ainda quando declarada a condição indigente a que foi reduzida a presa. Reconheceu poderes a um decreto para afastar a valia de uma garantia constitucional. Não quis dar à prisioneira o devido processo legal pelo crime do qual foi acusada no Brasil. Ciente de que mandava uma judia para as mãos da Gestapo, não levou tal fato em consideração. Deixou de proteger um nascituro brasileiro, ainda quando a Constituição em vigor concedia especial proteção à maternidade. Na lista das piores decisões já exaradas pela Corte Suprema, esse processo infame merece uma posição de destaque.