Ser cristão é seguir Cristo, é imitá-Lo. Tal conceito, não é novidade, porque, inéditas mesmo, são as situações e circunstâncias em que devemos nos aplicar a isto, por ser a caridade criativa.
Para o crente consciente de sua fé, a espiritualidade abre os seus braços também para o horizontal. Logo, o compromisso de crer não consiste somente em erguermos os braços em direção ao Céu, verticalmente, a Deus. Para apreendermos os mandamentos do Senhor, ser-nos-ão necessárias atitudes de conversão. No Deuteronômio, temos Moisés, chamado “Legislador da Antiga Lei”, a dizer ao povo: “Ouve a voz do Senhor teu Deus, e observa todos os seus mandamentos e preceitos, que estão escritos nesta lei. Converte-te para o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma” (Dt 30,10). Mas, ao mesmo tempo em que os mandamentos divinos são-nos lições, igualmente são motivações, exortações pedagógicas, a que perseveremos na vontade do Senhor e, portanto, na prática da caridade: amor a Deus e ao próximo, fundamento da religião cristã, caput dos preceitos divinos.
Também percebemos que a obediência cordial aos mandamentos é uma espécie de espelho para os que vacilam na fé e são débeis na moral cristã. Se viver, autenticamente, como cristãos é imitar Cristo no mistério da Sua vida divina, cumprir os mandamentos é fazer da própria existência imagem do Ser de Deus. Apresentando-Se, manifestando a Sua vontade, Deus, através do Filho, Jesus Cristo, reconciliou Consigo todos as coisas, porque, Nele, tudo tem a sua consistência (cf. Cl 1,20.17). Neste sentido, se Cristo Se oferece à imitação, apresentando-nos os valores cristãos estampados nos mandamentos, esta imitação faz-se mais genuína pela prática da caridade, quando reconhecemos no próximo Deus.
Na Parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10,25-37), temos uma problemática bastante séria: um mestre da Lei, um conceitualmente versado nos preceitos do Senhor, desconhece, a dimensão prática de quem é o próximo, comprometendo também a teoria. Isto já é verificável no primeiro versículo do trecho ora refletido: “Um mestre da Lei se levantou e, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntou: ‘Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?'” (Lc 10,25). Se ele realmente soubesse no que consiste a caridade, não perguntaria nada a ninguém para constrangimento alheio. E, diante desta pergunta cuja resposta é óbvia, Jesus indaga-lhe: “O que está escrito na Lei? Como lês?” (Lc 10,26). E a partir da resposta dissimulada do mestre da Lei, que recitou a famigerada passagem do livro do Levítico (cf. 19,18), obtém este o imperativo de Jesus “Faze isto e viverás” (Lc 10,28).
Por que o Senhor disse-lhe isto, fazendo com que o mestre da Lei, em vão, quisesse se justificar? Porque Aquele que sonda os corações sabia qual a intenção do homem que, com uma pergunta aparentemente inofensiva, Lhe tentara. Jesus sabia que aquele homem não amava, verdadeiramente, a Deus, e não O amava de tal maneira porque não amava o próximo. Ele, desconcertado, não sabia sequer quem era o próximo, daí perguntar: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). São Cirilo, comentando a pergunta do mestre da Lei, afirma que este “mostra-se vazio do amor ao próximo, uma vez que não crê que ninguém seja seu próximo; e consequentemente mostra-se vazio do amor divino, pois, se não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”, recorrendo, assim, ao dito de São João, numa das suas cartas (cf. 1Jo 4,16).
É aqui que nasce a parábola que conhecemos, que, com muitos sinais, apontam para o amor de Cristo, o Verdadeiro Bom Samaritano, que veio socorrer o homem caído no pó dos seus pecados após o decaimento da sua natureza. Justamente aponta a parábola para a magnânima caridade de Cristo, que Se abaixou a ponto de Se fazer servo para libertar os escravos semi-mortos que éramos do mal, que nos assaltou e nos deixou a jazer. São Beda, neste sentido, ajudar-nos-á, quando diz em relação às úlceras que doloriam o acidentado: “As feridas são os pecados, porque por meio destes a integridade da natureza humana é violada”.
Passaram o sacerdote e o levita, que faziam o mesmo trajeto daquele que jazia, com os seus corações falsamente abastecidos da Palavra de Deus que escutaram, e não foram capazes de reconhecê-Lo naquele a quem julgavam irmão, próximo. Sim, porque para um judeu, próximo somente é outro judeu. E aquele caído era judeu; talvez viesse do mesmo culto em que estavam o sacerdote e o levita. Entretanto, nenhum destes o socorreu. E o Samaritano, considerado distante de um judeu, “chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas” (Lc 10,33). Santo Agostinho explica o significado dos unguentos utilizados pelo Samaritano: “A ligadura das feridas é a contenção dos pecados; o azeite, a consolação esperançosa através do perdão, que nos obtém a reconciliação da paz; o vinho, a exortação ao fervor nas obras do Espírito” (De quaest. evang. 2,19).
Perdoe-me se me delongo: é que rico de sinais é este Evangelho! Perceba, estimado leitor, que o Samaritano foi além do socorro imediato: retardou, a priori em um dia, a sua viagem, porque levou o ferido a uma pensão para que, naquela noite fosse cuidado por si, bondoso desconhecido. E mais: deixou-o sob tutela do dono do pensionato, recomendando-lhe bastantes cuidados e prometendo-lhe o ressarcimento dos gastos com aquele que seria assistido. Isto fez o Senhor ao deixar-nos a Santa Igreja Católica, ‘pensão e hospital de campanha’ daqueles que precisam ser curados pela graça divina e reanimados pelos sacramentos e por aqueles que se fazem irmãos, próximos, solidários com os que caíram, porque também, nalgum momento de suas vidas, caíram. E São João Crisóstomo: “A estalagem é a Igreja, que no caminho do mundo acolhe os homens cansados e fatigados pela bagagem dos seus delitos; ali deixando o fardo dos pecados, o viajante exausto descansa, e uma vez descansado é restaurado com a salutar pastagem”.
Que recompensa ganharemos ao coadjuvarmos o Bom Samaritano? “O que fizestes ao menor dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes. Vinde, benditos do meu Pai, e recebei a herança do Reino! ” (cf. Mt 25,40.34). O Senhor mesmo será o nosso devedor. Que beleza de mistério ao qual somos convidados a mergulhar com a prática da caridade, copiando, com o nosso cristianismo, o Cristo mesmo, o Bom Samaritano, que Se compadece e cuida da humanidade.