ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 1:22:35

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Considerações turísticas

Eis um tema fascinante da história do direito: o das punições de crimes de guerra. Na tradição bélica, ele era matéria a cargo dos vitoriosos, que aplicavam aos vencidos os castigos que a força e o êxito concediam. Na literatura, com especial destaque para Hugo Grotius (1583-1645), buscava-se uma disciplina dessas medidas, que, embora teorizada, por séculos não foi institucionalizada. 

No entanto, após a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), sobreveio o Tratado de Versalhes (1919), que indicou o Kaiser Guilherme II como responsável pelo conflito e previu que ele seria julgado por seus atos de agressão às nações (artigo 227). Todavia, asilado na Holanda, nunca houve a sua extradição. Esse encontro de contas jamais ocorreu. Uns poucos criminosos alemães foram julgados em Leipzig, em um tribunal criado por uma lei nacional aprovada depois do conflito.

Tal situação estimulou a novíssima Sociedade das Nações a buscar regular esses casos, carentes de um órgão de julgamento e de figuras criminais específicas. Participaram desses trabalhos jurídicos, entre outros notáveis, os brasileiros Clóvis Bevilaqua e Raul Fernandes. Não houve muito progresso, contudo.

Quando a 2ª Guerra Mundial ainda transcorria, em 18 de outubro de 1943, no encerramento da Conferência de Moscou, as potências aliadas declararam que seus adversários seriam submetidos a julgamento pelos crimes cometidos contra a humanidade, uma categoria nova de infrações. Promessa cumprida. Tão logo findo o maior conflito da história, 24 nazistas foram levados ao Tribunal Militar Internacional constituído por juízes e acusadores estadunidenses, franceses, ingleses e russos, sediado em Nuremberg, na Alemanha.

A defesa imediatamente questionou a legalidade do Tribunal, dos crimes e das penas. Nada disso existia antes do conflito. Recitava o dogma elementar do direito sancionador: não pode haver punição para um delito criado depois do fato que se pretende punir. Os questionamentos foram rechaçados pelos julgadores, sob a justificação de que as bases dessa legitimidade o antecediam: estavam em tratados, na moralidade e na memória dos povos civilizados.

Um estatuto definiu quatro categorias de delinquência, dentre elas a de crimes contra a humanidade. Fixou, também, os procedimentos punitivos de indivíduos e instituições, como o comando do Partido Nazista e a Gestapo, outra novidade. 

O exercício do direito de defesa foi permitido e, no período de novembro de 1945 a outubro de 1946, foram promovidas as audiências e apresentadas as provas do caso de cada um dos implicados. Durante o procedimento, um denunciado se suicidou (Robert Ley). Outro foi considerado incapaz (Gustav Krupp). Ao término desse rito, algumas instituições foram condenadas, outras absolvidas, sem prejuízo da responsabilidade de seus integrantes. No mesmo veredito, dois imputados foram inocentados. Os demais foram condenados à morte, à prisão perpétua, ou a períodos entre 10 e 20 anos de cárcere. As penas foram cumpridas, exceto quanto a Herman Göring, que se suicidou no dia em que seria enforcado. 

Em Tóquio, em razão das delinquências cometidas pelos japoneses no conflito, foi instalado um tribunal semelhante, em 1946. Até 1948, mais de 20 autoridades do Império do Japão foram condenadas nele.

A experiência de Nuremberg e de Tóquio foi incorporada pelo direito internacional. A Organização das Nações Unidas, em diversos documentos, a referendou, apesar da crítica de serem, ainda, a justiça dos vencedores, que excluía as suas próprias infrações.

Décadas mais tarde, mais dois tribunais “ad hoc” foram formados, com autorização da ONU. O primeiro, para crimes cometidos em Ruanda, foi instalado em 1995. Era sediado em Arusha, na Tanzânia. Funcionou até 2008 e condenou três dirigentes hutus a penas perpétuas de prisão. O segundo, para crimes perpetrados na antiga Iugoslávia, foi instituído em 1993. Funcionou em Haia, na Holanda, até 2017. Condenou mais de 90 dos seus acusados.

Esses tribunais especiais para essas guerras civis foram os últimos antes da criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), pelo Estatuto de Roma, de 1998. Em 2002, ele foi estabelecido em Haia. O TPI não analisa apenas os casos de crimes de guerra, como seus antecedentes, mas também os delitos cometidos em tempos de paz. Por isso, delinquências gravíssimas, praticadas no âmbito interno nacional, se não analisadas pelo respectivo sistema judiciário, podem sê-lo no TPI.

Recentemente, uma autoridade brasileira, brincando com a hipótese de ser processada perante o TPI, disse que iria “passear em Haia”, junto com o seu superior. Haia é uma bela cidade dos Países Baixos. Visitá-la, como turista, é uma excursão interessante, sem dúvida. Mas não se recomenda a ninguém a conhecer como réu no TPI. É muito difícil que ele aceite processar alguém, mas, quando admite, o defendente costuma aguardar preso o demorado julgamento e o número de condenações é superior ao de absolvições. Fica a dica.