ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 2:18:22

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Dred Scott

 

A origem peculiar dos Estados Unidos levou a que alguns de seus estados-membros autorizassem a escravidão e outros não. A expansão para o oeste gerou problemas. Esses novos espaços deveriam ser identificados como escravagistas ou livres. O Compromisso do Missouri, de 1820, criou o estado do Missouri, permitindo nele a escravidão, mas proibiu que no restante do território acima do Paralelo 36°30’N houvesse cativos. Essa complexa arquitetura jurídica federativa vai ensejar aquele que é considerado o julgamento mais infame da história do direito estadunidense.

Dred Scott era um escravizado nascido na Virgínia, por volta de 1799. Seu dono inicial, Peter Blow, migrou para o Alabama, em 1818, e, depois, para o Missouri. Lá, Scott foi vendido ao médico do exército, John Emerson. Deslocado para o Illinois, Emerson levou Scott. O Illinois era um estado que não admitia escravos. Em 1836, Emerson foi para o então território do Wisconsin. Scott foi com ele. Ali também não se admitia a escravidão. Scott, nesse tempo, casou-se com Harriet Robinson, também vendida a Emerson. Quando este foi enviado para um posto militar no Missouri, deixou Scott arrendado, apesar da vedação da escravidão naquela região. Depois disso, Emerson foi deslocado para a Louisiana, onde se casou com Eliza Irene Sanford, em 1838. Mandou chamar Scott e Harriet. A caminho de seu destino, em um barco, nasceu a filha do casal, também chamada Eliza. Pouco depois, Emerson foi novamente transferido e sua esposa levou os Scotts para Saint Louis, Missouri. Em 1843, Emerson, já fora do Exército, faleceu. Sua esposa herdou os escravos e os arrendou. Em 1846, Dred Scott tentou comprar a liberdade de sua família, mas sua dona se recusou. Ele então procurou a Justiça.

Scott tentou a liberdade judicialmente, apoiando-se em precedentes que diziam que, quando um escravo transitava em um estado ou território não escravista, ele se tornava irrevogavelmente livre. Em 1852, a Suprema Corte do Missouri, afirmando que “os tempos mudaram”, reviu a jurisprudência e declarou a derrota deles. Em 1853, Scott foi a juízo novamente, desta vez processando John Sanford, irmão de Eliza Irene, que houvera se casado novamente e transferido seus escravos para ele. Como Sanford morava em outro estado, Nova Iorque, o caso foi processado por uma corte federal. Esta, no entanto, não modificou o veredito anterior. Scott, então, levou o caso para a Suprema Corte dos Estados Unidos.

Era um tempo especialmente complicado nos EUA. O território do Kansas estava em guerra para saber se seria ou não um estado escravagista. O Partido Republicano foi fundado, em 1854, com um programa de obstrução do avanço da escravidão. O debate público estava inflamado. Houve interferências políticas significativas na análise desse processo. Em 6 de maio de 1857, a Suprema Corte, por 7 a 2, decidiu contra Dred Scott. Pela primeira vez na história, todos os seus juízes deram votos em separado. Ela definiu que os afro-americanos, embora pudessem ser cidadãos de alguns estados, não poderiam se tornar cidadãos estadunidenses. Seriam seres inferiores, segundo o entendimento daqueles que redigiram a Constituição de 1787. Justamente por isso, a Corte não poderia analisar o caso, já que não havia legitimidade de Scott para propô-lo. A seguir, de modo absolutamente desnecessário, eis que a causa já estaria resolvida nessa questão preliminar, o condutor da maioria, Roger Taney, assinalou que o Compromisso do Missouri era inconstitucional porque estabelecia um meio de libertação de escravos que violaria o princípio do devido processo legal (“ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal”), estabelecido pela 5.ª Emenda. Como os escravizados eram propriedade, a União não poderia ter legislado nesse assunto, já que proibia o exercício de um direito constitucionalmente afirmado. Era a segunda vez na história que a Suprema Corte declarava uma inconstitucionalidade. A anterior fora no caso Marbury versus Madison, cinquenta anos antes. Dois juízes divergiram: Benjamin Curtis e John McLean, livrando os seus nomes do opróbrio eterno.

Pouco depois do julgamento, o segundo marido de Eliza Irene, Calvin Chafee, um político abolicionista, conseguiu que a propriedade dos Scott fosse transferida para Taylor Blow, filho de Peter Blow, em Saint Louis, e este, finalmente, os alforriou. Meses depois, em 1858, Dred Scott morreu de tuberculose.
A disputa gerou agitações que muitos reconhecem como uma das causas da Guerra Civil (1861-1865). Depois do sangrento conflito, sobreveio uma série de emendas constitucionais. A 13ª, de 1865, aboliu a escravidão e a 14ª, de 1866, reconheceu os afro-americanos como cidadãos. Em 1870, a 15.ª garantiu-lhes o direito de sufrágio. Isso não resolveu problema do racismo nos EUA, ainda hoje presente. O caso entrou na história como “Dred Scott versus Sandford”, com um lapso de registro do nome “Sanford”. Mas este foi o menor dos erros.