ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 21:15:48

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Fascismo: apontamento

O termo fascismo é de difícil definição. Usado como insulto no debate político atual, é uma referência conceitual relevante, antagônica da democracia. A história o vincula aos regimes de Mussolini, Hitler, Salazar, Franco e Vargas, embora seus modelos autoritários não sejam idênticos. A recente emersão de líderes populistas tem chamado a atenção para a semelhança entre aspectos desses autoritarismos do século 20 e alguns casos contemporâneos. O tema atrai o olhar de estudiosos.

Jason Stanley é filósofo e professor da Universidade de Yale. A partir da situação política atual estadunidense, ele disseca as ferramentas que o pensamento e a ação fascista utilizam. Em “Como funciona o fascismo – A política do ‘nós’ e ‘eles’”, de 2018, faz a descrição do fenômeno, indicando os itens-chave da retórica e do comportamento fascista. Vale enumerar os elementos apontados por ele.

Para Stanley, fascismo é “qualquer tipo de ultranacionalismo (étnico, religioso, cultural), no qual a nação é representada na figura de um líder autoritário, que fala em seu nome”. A sua principal característica é a de fazer um apelo ao passado mítico. Mítico porque nunca existiu, mas é aludido para fundamentar a suposta degeneração do presente. Ele cita um discurso de Mussolini, de 1922, no qual este declara: “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não é necessário que ele seja uma realidade… Nosso mito é a grandeza da nação! E a esse mito, essa grandeza, que queremos transformar numa realidade total, subordinamos tudo!”.

Há também a propaganda, que esconde objetivos fascistas problemáticos com ideais aceitos, falseando a realidade. Hitler disse, em “Mein Kampf”, que a concentração de poderes era “a verdadeira democracia alemã”, apesar da contradição manifesta entre as palavras e a realidade. Emerge, para viabilizar essa dissociação, um notório anti-intelectualismo, que desvaloriza a educação, a especialização e a linguagem. O único propósito da educação é incutir o passado mítico e ensinar habilidades práticas. Os especialistas são substituídos por opinadores de senso comum, que ratificam a posição do líder. O debate público, por sua vez, deve ser restrito a “slogans”.

Constrói-se uma irrealidade comunicativa: o debate fascista é fundado no medo e na raiva. A realidade é substituída pelo pronunciamento de um único indivíduo. Teorias conspiratórias substituem o conhecimento comprovado. As eleições, por exemplo, frequentemente são assinaladas como não confiáveis. Mesmo quando vencidas por quem enuncia que não são confiáveis.

Adiante, detecta-se a construção de uma hierarquia. Nessa retórica, existem pessoas e grupos destinados a liderar (“nós”) e a sanear os demais indivíduos e coletividades (“eles”). As maiorias submetem as minorias (não necessariamente observado o critério quantitativo). Advém, em decorrência, uma alegação de vitimização. “Eles” – normalmente as minorias – ocupam o lugar e consomem os recursos que seriam por justiça dos grupos destinados a ocupar a posição hierarquicamente superior. Surge o elemento discursivo meritocrático. O mérito não está sendo respeitado, pois “eles” são preguiçosos e se aproveitam do trabalho e das riquezas geradas pelo grupo naturalmente dominante, “nós”.

Ganha força o discurso da “lei e ordem”. “Eles” são criminosos e devem ser neutralizados. A atuação da repressão é dirigida contra os indesejados, focando em seus crimes específicos. A ansiedade sexual também ocupa uma posição relevante na caracterização do comportamento fascista. “Eles” são uma ameaça à pureza do grupo superior. “Eles” estupram. “Eles” se degeneram sexualmente em gays e trans. O fascismo também tem uma preferência pelo universo interiorano, rural, que supõe ser mais puro. As cidades são pecaminosas, pois os grandes centros são os locais de maior presença “deles”.

Esse conjunto de itens, que se inter-relaciona, tem um lastro: em sociedades desiguais ou em severa crise é mais difícil combater o fascismo, que se alimenta das diferenças econômicas para incrementar a segregação entre “nós” e “eles”. Stanley também observa que o fascismo precisa da naturalização dessas aberrações, que essa ilusão seja maciçamente compartilhada pelo grupo do “nós”, a ponto de validá-las e desumanizar a “eles” todos.

Eis o perigo. O Brasil se declara, constitucionalmente, um Estado Democrático de Direito. Proclama igualdade, pluralismo e direitos humanos como fundamentos e objetivos da República. Isso tudo, além de ser cláusula pétrea, é medularmente antifascista. Mas o Brasil é, também, o sétimo país mais desigual do mundo e tem a segunda maior concentração de renda do planeta, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de 2019. Cumpre ter cuidado.