ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 20:20:19

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Frutos proibidos

Nenhum campo da atividade humana é infenso à absorção de instrumentos, materiais ou imateriais, concebidos no exterior. Do contato entre culturas distintas, desde sempre, umas incorporam elementos das outras. O direito não é exceção e o que se segue é um exemplo disso.

No Brasil, um dos pressupostos de uma decisão judicial válida é um processo limpo, sem vícios, nem nulidades. Fundamental para essa saúde processual é que sejam idôneos os meios e os conteúdos probatórios. A prova deve conter informações corretas, verídicas (o que o documento, a perícia, o testemunho, a confissão declaram deve ter ocorrido). Ela também deve ser estruturalmente válida (não deve ter sofrido adulteração). Finalmente, deve ter sido colhida de maneira legal (conforme as regras que viabilizam a sua aquisição). Ingressando no processo uma prova ilegítima, deve ser excluída. Mas não apenas ela tem de ser expurgada: tudo que dela decorre também. 

Entretanto, essa não é uma invenção jurídica brasileira. Ela foi concebida no julgamento do caso Silverthorne Lumber Company versus Estados Unidos, decidido em 1920. A empresa, do ramo madeireiro, tentou deixar de pagar impostos. Em 1919, os proprietários, pai e filho, foram presos por sonegação fiscal. Enquanto estavam encarcerados, agentes federais, sem qualquer mandado de busca, ilegalmente apreenderam documentos contábeis da companhia. Um promotor federal, apesar de reconhecer a ilegalidade do modo como foram obtidos os papéis, criou cópias desses registros. Ele sabia que os apreendidos não serviriam para condenar, já que o abuso era flagrante e existia um precedente da Suprema Corte proibindo o seu aproveitamento em situações assim (Weeks versus Estados Unidos, de 1914).

Contudo, com base nessas réplicas, o promotor produziu uma nova acusação. Em juízo, os proprietários requereram a devolução do material apreendido e das suas reproduções. Uma corte federal de primeira instância determinou a restituição. O promotor, no entanto, exigiu que os acusados apresentassem os seus livros comerciais como provas, o que o juiz autorizou. Eles se recusaram a fazê-lo. Alegaram que o promotor só tomou ciência dos fatos por causa da violação das garantias dadas pela Quarta Emenda, contra buscas e apreensões ilegais. A primeira e segunda instâncias, então, identificaram uma desobediência e condenaram o Silverthorne pai por isso, além de multar a empresa.

Na Suprema Corte, houve reversão dessa condenação, por sete votos a dois. O juiz Oliver Wendell Holmes afirmou: “Em nosso entendimento isso não é direito. Isso reduz a Quarta Emenda a meras palavras. (…) A essência de uma ordem proibindo a aquisição de provas de um certo modo é que não apenas aquelas evidências não podem ser usadas diante de um tribunal, mas que elas não podem ter qualquer uso. Claro que isso não significa que os fatos assim alcançados são tornados sagrados e inacessíveis. Se o conhecimento deles é obtido a partir de uma fonte independente, eles podem ser provados como qualquer outro, mas, a informação adquirida pelo Governo, a partir de seu próprio erro, não pode ser usada do modo proposto.”

A ideia subjacente a essa compreensão é de matriz ética. Se a prova derivada da ilícita fosse aproveitada, encorajar-se-ia a polícia a contornar as garantias constitucionais dos investigados. Por isso, a contaminação pela ilegalidade é irradiante. Como os frutos de uma árvore envenenada, nome pelo qual essa doutrina ficou conhecida.

Essa denominação adveio do julgamento do caso Nardone versus Estados Unidos, de 1939. Neste, interceptações telefônicas ilegais foram excluídas do processo, mas o conteúdo alcançado a partir delas foi validado pelo primeiro e segundo graus judiciários. A Suprema Corte, no entanto, pela voz do juiz Felix Frankfurter, assinalou: “Recai, é claro, sobre o acusado, em primeiro lugar, o ônus de provar, para o convencimento do tribunal de primeira instância, que a escuta telefônica foi ilegalmente utilizada. Uma vez isso estabelecido – como claramente foi feito aqui – o juiz deve dar oportunidade, por mais restrita que seja, para o acusado demonstrar que uma parte substancial da acusação contra ele era fruto da árvore envenenada. Isso deixa ao Governo ampla oportunidade de convencer o tribunal de primeira instância de que sua prova tinha origem independente.”

No Supremo Tribunal Federal, a teoria dos frutos da árvore envenenada apareceu, pela primeira vez, no Habeas Corpus 69912/RS, julgado em 30 de junho de 1993. O ministro Sepúlveda Pertence referiu os casos acima citados. Ficou vencido. No entanto, meses depois, em novo julgamento desse mesmo processo, a anulação das provas ilícitas por derivação foi determinada e se incorporou ao direito brasileiro. Desde 2008, está inscrita no segundo parágrafo do artigo 157 do Código de Processo Penal, no qual também são ressalvadas as provas arrecadadas por meio independente. A tese dos Silverthone demorou, mas chegou aqui.