ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 2:00:29

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Gastando vela

Na tarde de 16 de fevereiro, o deputado Daniel Silveira publicou um vídeo. Fiel ao seu estilo agressivo, atacou o Supremo Tribunal Federal e os seus membros de modo particularmente chulo. Ignorou as regras de decência, de decoro parlamentar e civilidade discursiva. Literalmente, pediu para ser preso. Horas depois, já no período noturno, foi capturado em sua casa em Petrópolis.

Congressistas só podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável. Uma gravação feita à tarde pode ser considerada ainda em flagrância à noite? O ministro Alexandre de Moraes entendeu que sim, já que o vídeo estava disponível no YouTube. Esse raciocínio reduz a diferença entre crimes permanentes (que se estendem pelo tempo, como o sequestro) e crimes instantâneos de efeitos permanentes (que tem momento de consumação específico, mas cujos efeitos são delongados). O flagrante do homicídio seria perpétuo, segundo essa lógica. Além disso, ele determinou a remoção do conteúdo dessa plataforma, sem requerimento de qualquer interessado, apesar de o Marco Civil da Internet exigir um pedido para tanto.

A hora em que a prisão foi cumprida também foi inusitada. À noite, diz a Constituição que, no recesso domiciliar, só se prende em flagrante. O ministro emitiu um mandado. Mandados, entretanto, só podem ser cumpridos até as 21 horas, diz a Lei de Abuso de Autoridade, nos casos de busca e apreensão. Presume-se o mesmo para prisões. Felizmente, o deputado não resistiu à entrada dos policiais em sua casa. O fato de existir um mandado e a prisão ser em flagrante causa alguma espécie. O mandado dá conforto à polícia para prender o parlamentar, mas reforça a ideia de que a flagrância não existia.

Os cinco crimes ditos praticados no vídeo estão na polêmica Lei de Segurança Nacional. Três pressupõem violência e grave ameaça. Dois falam de subversão das classes sociais e de caluniar os ministros do STF. A justificativa da inafiançabilidade para o flagrante foi dada em uma disposição legal que incide para grupos armados que atuam para desestabilizar a ordem democrática. Ocorre que nenhuma palavra do deprimente discurso do preso referia à ação de grupos armados (exceto a dar uma surra com um gato morto em um dos togados, o que não é, certamente, o que pressupõe a lei no conceito de arma).

Uma vez preso, o deputado não foi levado para a audiência de custódia a que faz jus qualquer detido. Passaram-se 24 horas e ele não teve esse direito dado inclusive a flagrados em homicídios, estupros, latrocínios, tráfico de entorpecentes, crimes hediondos, enfim. No dia seguinte, a Procuradoria-Geral da República, ao oferecer a denúncia, não fez menção à ação armada. Mas, apesar disso, a prisão foi mantida pelo STF, por unanimidade. Reconheceu-se que suas ofensas não tinham relação com o mandato. Por isso, não poderiam ser consideradas contidas na imunidade própria aos congressistas. Porém, o próprio STF houvera definido que, quando o fato não tem vínculo com o exercício da função, ele não teria competência para processar e julgar o congressista. Outra idiossincrasia desse cenário processual, a que se soma a de que os juízes do truculento parlamentar, nesse momento, foram as mesmas pessoas a quem ele ofendeu. Os mesmos indivíduos que poderão processá-lo civilmente por danos morais, ou que deporão no processo na condição de vítimas. As regras de preservação da isenção foram profundamente reconfiguradas.

Em 18 de fevereiro, foi realizada a audiência de custódia. Segundo a jurisprudência do STF, mesmo em tempos de pandemia, ela deve ser feita presencialmente e no fórum. No caso, foi realizada por videoconferência e em delegacia. A lei afirma que o flagrante será convertido em prisão preventiva, quando presentes os requisitos para tanto. Caso contrário, o preso será libertado. Se for a situação de preventiva, far-se-á a análise da possibilidade de aplicação de uma medida diversa da prisão, como o uso de tornozeleira eletrônica. A ele não se afirmou esse direito: fixou-se que deveria aguardar a decisão da sua casa parlamentar de manter ou não seu encarceramento. A Câmara dos Deputados manteve a prisão por 364 votos. Ele segue encarcerado até o momento em que este artigo está sendo redigido (2 de março, meio-dia).

Juridicamente, a pior coisa que pode ocorrer a um ser humano é não ter juiz. Alguém sequestrado enquanto faz um saque em um banco, não tem juiz. Está à mercê da força bruta. Não há devido processo legal. Só a arma do ofensor. A segunda pior é ter um juiz de exceção. Um que decida fora das regras de competência e à margem do direito posto. Diz o ditado que não se deve gastar vela boa com defunto ruim. Em direito, todavia, vigora a ideia oposta. Os romanos já prescreviam: “odiosa restringenda, benigna amplianda”. O que é restritivo de direitos deve ser interpretado restritivamente. Também diziam: “beneficium juris nemini est denegandi”. A ninguém se nega o benefício do direito. A ninguém.