ARACAJU/SE, 23 de abril de 2024 , 5:37:31

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Marbury versus Madiso

 

Em 1800, depois de vencer todas as eleições presidenciais norte-americanas até então realizadas, os federalistas foram batidos. Eles teriam de ceder aos republicanos a presidência dos Estados Unidos. John Adams, candidato à reeleição derrotado por Thomas Jefferson, usou seus últimos dias na Casa Branca intensamente. O Congresso ainda era de maioria federalista e queria minorar a força dos vitoriosos. Aprovou, em 13 de fevereiro, o Ato Judiciário de 1801, que facultou ao presidente vencido a designação de 16 novos magistrados federais. Também aprovou, em 27 de fevereiro, a Lei Orgânica do Distrito de Colúmbia, que deu a Adams o poder de indicação de 42 juízes de paz. Ele correu para nomeá-los. O Senado ratificou os nomes, que ficaram conhecidos como “os juízes da meia-noite”.

Tudo aconteceu a poucos dias da posse de Jefferson, ocorrida em 4 de março. Apesar da correria, alguns desses juízes de paz não conseguiram ser empossados pelo Secretário de Estado de Adams, John Marshall. Este, por sua vez, também estava nomeado para ser o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Já com Jefferson investido, William Marbury, um dos retardatários, pediu ao novo Secretário de Estado, James Madison, que lhe desse posse. Madison recusou. Inconformado, valendo-se do Ato Judiciário de 1789, Marbury ajuizou, diretamente na Suprema Corte, um “writ of mandamus” (algo como o nosso mandado de segurança).

Os republicanos, a essa altura com maioria no Congresso, trabalhavam para desfazer as medidas do final do governo Adams. Pelo Ato Judiciário de abril de 1802, extinguiram o de 1801, que criara os cargos de juiz federal. Os magistrados que haviam sido investidos foram demitidos. Modificaram o calendário das sessões da Suprema Corte, na prática suspendendo-as por seis meses. O clima político tornara-se carregado. O Governo fez entender que não cumpriria qualquer decisão da Suprema Corte que impusesse a posse de Marbury, apesar de ela haver se tornado questão de honra para os federalistas.

Foi então que, em 1803, John Marshall encontrou uma solução política brilhante, que engendrará uma ferramenta jurídica imprescindível às democracias contemporâneas: o controle de constitucionalidade, o “judicial review”. O dilema de Marshall era o seguinte: se desse razão a Marbury, não haveria cumprimento da decisão e a própria Suprema Corte estaria fadada à inutilidade dali em diante. Por outro lado, se não reconhecesse o direito, desmoralizaria a gestão da qual fez parte até o último instante, fortalecendo o poder dos republicanos. A saída encontrada foi usar um mecanismo não previsto expressamente na Constituição dos EUA: a declaração de inconstitucionalidade.

O Tribunal, por unanimidade (5×0), em 24 de fevereiro de 1803, em voto elaborado por Marshall, inverteu a ordem natural da argumentação judicial. Primeiro, foi ao mérito. Reconheceu que Marbury tinha o direito de ser nomeado. Todavia, também afirmou que o Congresso errou ao atribuir à Suprema Corte o julgamento do tipo de ação ajuizada por Marbury. Agiu como se estivesse acrescentando, por lei comum, atribuições que não eram previstas no artigo III da Constituição. Ele não dispunha desse poder. A norma criadora da competência era inconstitucional. Logo, a própria ação de Marbury não poderia ter sido ajuizada. Deveria ser extinta.

Sob o olhar de hoje, tudo parece esquisito. A presidência da República sequer poderia cogitar descumprir a ordem judicial. Marshall, que já estava nomeado para a Suprema Corte, não poderia permanecer Secretário de Estado na reta final do governo Adams. Ele também seria um julgador impedido de participar do julgamento, eis que a posse de Marbury, o próprio ato que se discutia no processo, deveria ter sido feita perante ele, no Executivo. A análise da questão preliminar precisaria preceder a apreciação do mérito do direito discutido. Por fim, atualmente soa óbvio que uma lei que contrarie uma constituição não pode prevalecer. Isso, contudo, é tecnologia nova. Quando Marshall decidiu, a estrutura jurídica era muito mais rudimentar. Embora existisse alguma literatura indicando a possibilidade, em que pese algumas cortes estaduais já houvessem aplicado figuras semelhantes à declaração de inconstitucionalidade, era a primeira vez que isso ocorria diante da Suprema Corte.

Uma ferramenta não prevista pela Constituição dos EUA foi usada para afirmar a supremacia dela sobre a lei comum. Uma competência implícita, deduzida do sistema, rejeitava uma competência explícita, extraída de um texto legal. Nasciam, no mesmo parto, a supremacia da Constituição e o ativismo judicial. Os irmãos estão até hoje vivos, bem vivos.