ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 15:07:34

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Notória

Ruth Bader Ginsburg (1933-2020), juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, faleceu na última sexta-feira, 18 de setembro, aos 87 anos. O amplo noticiário sobre esse fato deixou uma série de reflexões pendentes. Uma delas concerne a saber o motivo pelo qual a morte de uma magistrada estadunidense foi tão comentada ao redor do mundo. A resposta, ao menos no que toca às repercussões brasileiras, é relativamente simples de se extrair.

RBG, como se tornou conhecida, foi um ícone dos direitos civis, em especial, os relacionados à igualdade. Em uma época em que mulheres eram raramente admitidas em cursos jurídicos, formou-se na Universidade de Colúmbia. Após estudos na área dos direitos de gênero, inclusive na Suécia, lecionou esse tema na Universidade Rutgers. Pouco depois, atuou como advogada da Associação Americana das Liberdades Civis (ACLU). Nos anos 70, defendeu uma série de demandas perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, advogando postulações isonômicas. Vale mencionar algumas. Em Reed versus Reed, de 1971, conseguiu que uma lei de Idaho, que dava preferência aos homens na administração do patrimônio familiar nas sucessões, fosse considerada discriminatória. Em Frontiero versus Richardson, de 1973, uma militar alcançou para o seu marido acesso a benefícios previdenciários pagos até então apenas aos dependentes de homens. Em Weinberger versus Wiesenfield, de 1975, ficou estabelecido que um viúvo com filho faz jus aos direitos que a sua viúva teria, se ele houvesse falecido. Em Craig versus Boren, de 1976, foi reconhecida a inconstitucionalidade de uma lei que não permitia que homens abaixo de 21 anos comprassem determinadas bebidas alcoólicas, embora mulheres acima de 18 já pudessem. Seu foco era expor a antijuridicidade do preconceito de gênero, com base na 14.ª Emenda, que garantia a todos igual proteção perante a lei.

Em 1980, Jimmy Carter indicou RBG para a Corte Federal de Washington DC. Ali, ela travou relações com juízes conservadores como Robert Bork e Antonin Scalia (que também viria a ser juiz constitucional e seria um de seus melhores amigos, apesar do oceano de divergências jurídicas e políticas que os separavam). Em 1993, Bill Clinton a escolheu para a Suprema Corte. Antes dela, uma única mulher havia alcançado aquele tribunal, a juíza Sandra Day O’Connor, nomeada por Ronald Reagan, em 1981. Mas, com RBG, aportava mais do que uma representação feminina: chegava uma voz liberal. A maioria conservadora – estabelecida em 5 votos a 4 desde então – habituou-se a ouvir o seu famoso e moralmente poderoso “I dissent” (eu divirjo) em votos agudos, lidos da bancada.

Seu dissenso era tão robusto quanto suas posições vitoriosas. Em Ledbetter versus Goodyear, de 2007, uma trabalhadora postulava que lhe fosse garantido o direito de receber o mesmo salário de seus colegas homens, que exerciam as mesmas funções que as suas. A empregada havia descoberto por acaso a discriminação. Embora o Tribunal tenha reconhecido que havia a infração à isonomia, afirmou que o prazo para reclamar houvera se esgotado, sem que a reclamante houvesse tomado providências. RBG ressaltou que essa interpretação desconsiderava o mundo real, aquele no qual as mulheres efetivamente existiam e no qual o acesso a tais informações era ocultado delas. Pouco depois, Barack Obama deu apoio a uma iniciativa legislativa que modificou essa verificação de prazos e deixou evidente a impossibilidade de tratamento remuneratório distinto. Ela, contudo, apesar de compor a minoria, nem sempre foi vencida. Em Estados Unidos versus Virgínia, de 1996, seu entendimento garantiu o direito de mulheres serem alunas da Academia Militar da Virgínia. RBG sustentou a posição majoritária, na direção de que impedir o acesso delas a esse prestigioso estabelecimento era injustificável.

Ela se tornou uma referência feminista. Passou a ser conhecida como “Notorious RBG”. Camisetas estampam a sua imagem. É um símbolo transgeracional. Recentemente, dois filmes cuidaram da sua biografia. Suprema (“On the basis of sex”), de 2018, em que foi interpretada por Felicity Jones. Uma ótima película que foca no início de sua carreira, no caso Charles E. Moritz versus Commissioner of Internal Revenue, no qual ela postulava pelo direito do autor solteiro de deduzir as despesas com os cuidados de sua mãe doente. Segundo a lei então vigente, não seria permitido porque ele não seria casado, viúvo ou mulher. O segundo é A juíza (“RBG”), também de 2018, em que toda a sua trajetória é contada e no qual ela mesma tem participação narrativa.

Eis o ponto. No Brasil de hoje, apesar do colossal volume de desigualdades, de todos os tipos, não há um único profissional jurídico capaz de gerar empatia e admiração semelhante a que foi alcançada por RBG. Apesar da imensidão de espaço a preencher, não há ninguém nacionalmente associado a uma causa desse modo. A construção, por RBG, de uma carreira coerente, assentada em valores tão nobres, é motivo suficiente para questionar por que juristas, por aqui, são tão pouco inspiradores.