ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 14:21:04

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O amigo do presidente

O Supremo Tribunal Federal foi criado à semelhança da Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS). Por isso, é interessante a comparação entre ambas as instituições e o conhecimento de seus episódios críticos. O relato adiante diz respeito aos limites éticos dessa magistratura peculiar e seus controles pelos demais poderes e pela sociedade.

Abraham Fortas (1910-1982) alcançou graduação jurídica na conceituada Universidade de Yale, onde tornou-se professor. Além do magistério, foi conselheiro da Comissão de Valores Mobiliários e trabalhou no Departamento de Interior nos governos de Franklin Roosevelt e Harry Truman. Participou, além disso, da missão oficial estadunidense na criação da Organização das Nações Unidas.

Em 1948, “Abe” advogou para Lyndon Baynes Johnson (LBJ) na disputa judicial de uma cadeira para o Senado, pelo Texas. Já eram amigos antes, mas, desde então, nutriram estreita proximidade. Quando, em 1963, John Kennedy foi assassinado e LBJ, seu vice, assumiu a presidência dos EUA, Fortas era um dos seus consultores mais próximos. Eram tão amigos que Johnson trabalhou para que o então juiz Arthur Goldberg deixasse a Suprema Corte, para nomeá-lo em seu lugar. Goldberg aceitou ser embaixador na ONU e ele se tornou juiz da SCOTUS, em outubro de 1965.

Como advogado, Fortas trabalhou causas importantes que o notabilizaram. Na SCOTUS, por exemplo, em “Durham versus EUA”, de 1953, sustentou, com sucesso, a possibilidade de admissão da prova psicológica e psiquiátrica para fins de exclusão da responsabilidade criminal. Como patrono designado pelo tribunal, em 1963, atuou em “Gideon versus Wainwright”, em que ficou estabelecida a garantia de um defensor para quem não pudesse pagar um. Sua chegada a esse sodalício não foi, portanto, imerecida. Nele, ajudou a superar o entendimento de que adolescentes não possuíam as mesmas prerrogativas processuais dos adultos em juízo (“Kent versus EUA”, de 1967) e a impedir que sofressem penas ainda mais severas que as destes (“In re Gault”, também de 1967). Participou, assim, do momento da virada jurisprudencial extensiva dos direitos civis, compondo a maioria sob a liderança do presidente daquele colegiado, Earl Warren.

Warren, porém, informou ao presidente Johnson sua aposentadoria. Temia uma vitória eleitoral dos republicanos e a nomeação de um conservador para o seu posto, caso postergasse a sua retirada. LBJ quis fazer seu velho companheiro presidente da Suprema Corte e o indicou, em junho de 1968, para tanto. Mas os ventos estavam mudando na política. Johnson não concorreu à reeleição e seu partido, o Democrata, estava enfraquecido diante de um crescimento dos republicanos, que resultaria no êxito de Richard Nixon. Os republicanos, inconformados com a jurisprudência progressista da Era Warren, viram na indicação de Fortas uma oportunidade de interromper esse fluxo e trabalharam contra, apoiados por democratas conservadores do sul daquele país.

A vida de Fortas foi milimetricamente pesquisada. Descobriu-se que, mesmo depois de nomeado para a Suprema Corte, ele era chamado na Casa Branca para aconselhar Johnson em temas jurídicos. Também foi descoberto que uma universidade privada houvera feito o pagamento de 15 mil dólares para que ele fizesse nove palestras. Entretanto, os financiadores de tais pagamentos eram, indiretamente, companhias cujos interesses eram afetados por decisões judiciais. Também foi questionada a maneira como ele decidiu os temas relacionados à liberdade de expressão, especialmente quanto à pornografia. Os senadores adversários fizeram sessões com os filmes que a Suprema Corte apreciou e que Fortas não censurou. Diante da opinião pública que se formava negativamente, ele pediu para que Johnson retirasse a sua indicação. Coube a Nixon, na sequência, aproveitar-se desse vácuo para nomear o conservador Warren Burger para o cargo.

Fortas não foi presidente da Corte, mas permaneceu nela, fragilizado. Em 1969, descobriu-se que, em junho de 1965, ele aceitou 20 mil dólares anuais vitalícios de uma fundação mantida por Louis Wolfson, investigado por crimes econômicos. Apesar de haver recebido apenas uma parcela e tê-la devolvido, os republicanos suspeitaram de que tais pagamentos destinar-se-iam a que Fortas buscasse o perdão presidencial para esse investigado, usando de sua amizade com LBJ. Um congressista pediu o seu impeachment, mas ele abdicou da toga antes que a crise contaminasse a SCOTUS.

O mundo dá voltas. Para a vaga, Nixon encontrou resistência entrincheirada dos democratas. Fracassou em duas tentativas de nomeação (Clement Haynsworth e Harrold Caswell), até que emplacou Harry Blackmun, em 1970. Este viria a ser o redator da decisão de “Roe versus Wade”, de 1973, que garantiu o direito de aborto no primeiro trimestre de gestação, até hoje o precedente mais atacado pelos republicanos. Nixon, por sua vez, foi encurralado no escândalo Watergate e renunciou, em 1974. Mas, essa é outra história.