ARACAJU/SE, 20 de abril de 2024 , 7:30:11

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O caso da fábrica de fogos de artifícios

Em 11/12/1998, ao meio-dia, uma explosão em uma fábrica de fogos de artifícios em Santo Antônio de Jesus, na Bahia, matou 60 pessoas e deixou seis feridas. Entre os mortos estavam 20 crianças. A atividade, embora fosse autorizada pelo Exército e pelo Município, era feita por pessoas pobres, quase todas pretas ou pardas, cujos direitos trabalhistas mais elementares não eram reconhecidos. Não havia fiscalização, mas o fato não era desconhecido na cidade e as autoridades jamais se dignaram a enfrentá-lo. O resultado foi a morte chocante de tantas pessoas e a mutilação das sobreviventes. As precauções inexistentes e a tolerância com o risco estão na base dessa tragédia.

As medidas administrativas e as judiciais decorrentes do evento não conduziram a efeitos concretos. Em 3/11/2011, 13 anos depois, sem que os processos tivessem chegado às reparações aos atingidos e à punição dos culpados, um grupo de organizações não-governamentais e três indivíduos levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Em 2018, a CIDH concluiu que o Brasil violou os direitos: 1) à vida e à integridade pessoal das vítimas e de seus familiares, uma vez que não cumpriu suas obrigações fiscalizatórias; 2) das crianças submetidas àquela situação irregular; 3) ao trabalho, pois sabia que na fábrica vinham sendo cometidas graves irregularidades que implicavam alto risco e iminente perigo para a vida e a integridade pessoal dos trabalhadores; 4) à igualdade e não discriminação, pois a fabricação de fogos de artifício era, no momento dos fatos, a principal opção de trabalho das vítimas, as quais, dada sua situação de pobreza, não tinham outra alternativa senão aceitá-lo; e 5) às garantias judiciais, pois nos processos civis, penais e trabalhistas conduzidos no caso, o país não garantiu o acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação e punição dos responsáveis, nem a reparação das consequências das violações de direitos ocorridas.

O caso foi apreciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 15/07/2020, com sentença publicada em 26/10/2020. Era impossível refutar as constatações da CIDH, destacadamente a demora absurda na conclusão de processos judiciais e a situação em que foram deixadas as vítimas sobreviventes e as famílias das falecidas. Os procedimentos para afirmação das responsabilidades civis e criminais ainda não haviam sido concluídos no momento do julgamento pela Corte IDH, passados 22 anos.

A decisão impôs diversas obrigações ao Brasil, destacando-se que ele: 1) dará continuidade aos processos ainda em tramitação, para, em um prazo razoável, concluí-los e, caso pertinente, promover a completa execução das sentenças; 2) oferecerá, de forma gratuita e imediata, o tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, quando for o caso, às vítimas que o solicitem; 3) providenciará publicações da deliberação; 4) produzirá e divulgará material para rádio e televisão; 5) realizará um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; 6) inspecionará, sistemática e periodicamente, os locais de produção de fogos de artifício; 7) apresentará um relatório sobre o andamento da tramitação do Projeto de Lei do Senado Federal 7.433/2017, que regulamenta essa atividade perigosa; 8) elaborará e executará um programa de desenvolvimento socioeconômico, em consulta com as vítimas e seus familiares, com o objetivo de promover a inserção de trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados de trabalho e possibilitar a criação de alternativas econômicas; 9) apresentará um relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos; 10) pagará as quantias fixadas a título de indenizações por dano material, dano imaterial e custas e gastos.

O Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil é uma história de horror. É a demonstração de sucessivas falhas do país em prover os seus cidadãos do mínimo de proteções contra absurdos somente possíveis em razão de sua negligência sistemática. É a confissão de que o brasileiro, muitas vezes, está abandonado à própria sorte.

Apesar de ainda muito desconhecida, a jurisprudência da Corte IDH integra os referenciais jurídicos nacionais. O Brasil se obrigou a se sujeitar a essa jurisdição, que faz aplicar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Há, todavia, um pensamento raso e disseminado que enuncia que os direitos humanos seriam garantias aplicáveis apenas aos bandidos. Essa estupidez, alimentada ora por ignorância, ora por má-fé, foi desmentida por esse julgamento, inteiramente dedicado à tutela dos direitos das vítimas.