ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 5:29:00

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O critério epidérmico

Há poucos dias, em uma noite de domingo, três homens pretos, adultos, dentro de um veículo, foram abordados por policiais militares, em uma rua do centro de Aracaju. Um deles, advogado, apressou-se em informar seu ofício e perguntar a razão da abordagem. Sem maiores explicações, ele, seu filho e um amigo, foram postos contra uma parede e corporalmente revistados. O veículo também foi examinado. O causídico ainda indagou qual seria a “fundada suspeita” que justificaria o procedimento. Ao final, quando liberados, receberam como resposta a informação de que “esse é o trabalho da polícia”. Será mesmo?

No Estado de Direito, a atuação policial dá-se na forma da lei. Para o contexto mencionado, o Código de Processo Penal, em seu artigo 244, contém a seguinte disposição: “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.” A expressão-chave é “fundada suspeita”. Ou se tem mandado, ou se está em situação de flagrante, ou se tem “fundada suspeita” de que a pessoa porte algo relacionado a um crime.

No mundo real, infelizmente, as coisas se distanciam desse padrão. É como se a realidade criasse seus próprios parâmetros de funcionamento, conforme seja o entendimento particular do agente público responsável pelo ato de busca. Como a jurisprudência brasileira é majoritariamente leniente com esse tipo de atuação discricionária, vale citar uma recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre o erro desse tipo de comportamento.

Na situação concreta, dois homens foram alvos de ações policiais. O Sr. Carlos Alberto Fernández Prieto foi preso em maio de 1992, pela polícia da província de Buenos Aires. O Sr. Carlos Alejandro Tumbeiro foi capturado, em janeiro de 1998, pela Polícia Federal de lá. Para ambas as prisões, o único fator determinante da abordagem era a aparência dos detidos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), comunicada desses episódios, analisou-os. A CIDH observou que ambas as prisões foram feitas sem ordem judicial e sem estado de flagrante delito. Indicou que em nenhum dos eventos foi apontado, de forma detalhada, pelo agente público, quais os elementos objetivos que geraram suspeita razoável da prática de um crime. Da mesma forma, quanto ao Sr. Tumbeiro, indicou que a explicação apresentada para a detenção, relacionada ao “estado de nervosismo” e “inconsistência” entre as roupas dele e a área em que ele esteve, revelava conteúdos discriminatórios com base no aspecto físico do abordado. Nesse sentido, a Comissão apontou que as prisões e buscas realizadas não obedeceram ao padrão de legalidade e vedação da arbitrariedade exigidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, a CIDH destacou que as autoridades judiciais não ofereceram respostas eficazes contra esse cenário. Ao contrário. Elas acolheram a omissão estatal quanto a exigir razões objetivas para o exercício do poder legal de deter pessoas com base em suspeita e validaram como legítimas as razões estéticas apresentadas pelos policiais.

A CIDH enviou esses fatos para a apreciação da Corte IDH. A sentença do caso Fernández Prieto y Tumbeiro vs. Argentina foi divulgada em 6 de outubro passado. Por ela, a Corte reconheceu que as abordagens policiais feitas naquele país observavam, de modo sistemático, uma metodologia equivocada. Ela decidiu que a Argentina errara e, portanto, indenizará a ambos os presos. Além disso, emitiu algumas ordens. O país vizinho deverá corrigir suas normas que permitem parar, realizar buscas em veículos ou pessoas sem ordem judicial. Disse também que ela deverá conceber e implementar um plano de formação para a polícia, o Ministério Público e o Judiciário. Ordenou que ela projete e implemente um sistema de coleta de dados e cifras ligado a prisões e buscas.

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa – Márcio Thomaz Bastos (IDDD), que congrega profissionais jurídicos brasileiros, participou do processo na condição de “amicus curiae”, apresentando dados relacionados à situação do Brasil no que concerne a tais abordagens. A ausência de critérios, a pobre documentação das ocorrências e a seletividade dos alvos foram referidas, além da quase absoluta dependência da palavra dos agentes policiais na aferição dos flagrantes.

A deliberação da Corte IDH, ainda quando referente a um procedimento argentino, é uma luz para o ordenamento jurídico e para o comportamento judicial brasileiros, seja para os flagrantes de delitos, seja para as buscas pessoais. Daí a necessidade de se dar atenção a ela. Não raro, o critério para a abordagem de pessoas, por aqui, não é claro. É subjetivo. É superficial. É epidérmico.