ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 5:51:58

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O Oitavo Dia

Pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus (Grageru)

Em todos os anos, a Igreja, no Segundo Domingo da Páscoa, também chamado de “Domenica in albis” ou, por instituição do Papa São João Paulo II, “Domingo da Misericórdia”, proclama o Evangelho de João 20,19-31, que trata da primeira manifestação do Ressuscitado aos temerosos Apóstolos, trancafiados no Cenáculo, mas que também nos apresenta, após oito dias, a experiência do incrédulo Tomé diante Senhor redivivo. Além de tantos elementos que podemos sublinhar, está o fato de que o Evangelho percorre, em suas breves linhas, o espaço temporal de oito dias, sempre no Domingo. Mas, o que isto quer dizer?

Ao verificarmos o livro do Gênesis, no primeiro relato da criação (cf. Gn 1,1-2,4), é-nos apresentado Deus que cria tudo a partir do nada, apenas com a força da Sua Palavra, com a imagem de um trabalhador, que, cumprindo uma espécie de jornada de trabalho, percorre o arco de uma semana, descansando no sétimo dia, que entrará na mentalidade judaica como “dia de repouso” (em hebraico: sabbath). Para o judeu, inclusive nos nossos dias, o sábado, dia do descanso do Senhor, deve ser estritamente observado como preceito, inclusive na abstenção de trabalhos de quaisquer sortes.

Mas, deixando de lado a mentalidade teológica do sábado judaico, fixemo-nos no que o relato da criação põe no primeiro dia: “No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz dia, e às trevas noite. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia” (Gn 1,1). Podemos observar que, antes do primeiro dia, existia o kairós, que, de maneira teológica, poderíamos chamar de “o dia eterno de Deus”, no qual não existe as trevas da noite. E, por mais que Deus tenha criado no primeiro dia a luz que norteia os calendários, o dia eterno da divindade não deixou de existir.

Aprendemos, desde tenra idade, que a semana possui sete dias, iniciando-se, assim, no domingo e encerrando-se no sábado. Se para os judeus o dia de preceito é o último, o sábado, para os cristãos isso não acontece porque, para nós, o dia do Senhor é, como o próprio nome designa, o domingo. Não porque simplesmente seja o começo da semana; não porque Deus tenha criado no primeiro dia a luz. Não. O Dia do Senhor é o domingo porque este é o dia da Ressurreição de Jesus, a verdadeira Luz do mundo (cf. Jo 8,12). E mais: teologicamente, para os cristãos, o Domingo não é apenas o primeiro dia; por causa da ressurreição do Senhor, o Domingo é o oitavo dia, ainda que na contagem cronológica da semana esta disponha de sete dias.

Falo estas coisas, não simplesmente com o olhar no Evangelho, que nos fala de oito dias entre as duas primeiras manifestações do Ressuscitado aos Apóstolos, como também miro o que nos disse o Senhor no Apocalipse de São João: “Eu sou o Primeiro e o Último, aquele que vive. Estive morto, mas agora vivo para sempre. Eu tenho a chave da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). Logo, esta passagem corrobora a relação que a Igreja sempre fez tendo o Domingo como o primeiro e o oitavo dia, porque é o Cristo o nosso eterno Domingo, que não terá crepúsculo, já que, como também nos diz o Apocalipse de São João no retrato que oferece da nova Jerusalém para a qual rumamos e já entrevemos no mistério da Igreja: “a glória de Deus a ilumina, e a sua luz é o Cordeiro. […] Já não haverá noite, nem se precisará da luz de lâmpada ou do sol, porque o Senhor Deus a iluminará” (Ap 21,23.22,5). É por isso que São Justino chamava o domingo de “Dia do Sol” (Apologia I,67), nomenclatura que já era de uso pagão para nomear este mesmo dia de hoje, porém com uma conotação diferente. Também nas línguas inglesa e alemã esta alcunha de ser o domingo o “Dia do Sol” permanecerá (Sunday e Sonntag, respectivamente).

O Cristo Ressuscitado é primícias da nova criação. Na Carta Apostólica “Dies Domini”, sobre a santificação do domingo, o Papa São João Paulo II, dentre outras afirmações, dirá as razões teológicas deste dia, recorrendo, inclusive, à teologia de que é hoje o dia da nova criação: “O domingo, com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar a salvação que lhe foi oferecida no batismo e que o tornou homem novo em Cristo” (n. 25). Sua Santidade, falando ainda sobre o domingo, vasculhando o que afirmaram os Padres da Igreja dos primeiros séculos, traz à lume a ideia do Oitavo Dia como imagem da eternidade: “[…] situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente evocadora, não só do início do tempo, mas também do seu fim no ‘século futuro’. S. Basílio explica que o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo atual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho. Nesta perspectiva do dia último, que realiza plenamente o simbolismo prefigurativo do sábado, S. Agostinho conclui as Confissões falando do eschaton como ‘paz tranquila, paz do sábado, que não entardece’ (13,50). A celebração do domingo, dia simultaneamente ‘primeiro’ e ‘oitavo’, orienta o cristão para a meta da vida eterna” (Ibidem, 26).

A importância do domingo como orientador da nossa caminhada rumo ao Céu à luz do Ressuscitado deve ser a grande motivação de observarmos o preceito dominical como necessidade insubstituível da nossa alma. Encarando o Dia do Senhor com este valor de importância – não simplesmente pela atrição de, cometendo pecado mortal, merecer o inferno –, certamente, reconheceremos Jesus como nosso Senhor e nosso Deus, muito melhor do que Tomé (cf. Jo 20,28), sempre mergulhando nas Suas chagas gloriosas, abertas para nós, escondendo-nos nelas, fazendo-as nosso refúgio e nosso restauro.