ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 14:29:40

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O palco e o palanque

Quem viu Fafá de Belém animar os comícios das Diretas-Já e da campanha de Tancredo Neves, ocorridos no crepúsculo da Ditadura Militar, sabe o quanto a presença de artistas nos palanques foi importante para que a sociedade brasileira despertasse um sentimento democrático sufocado. Muitos imaginam que as liberdades públicas, desde então, só evoluíram. Ledo engano. Nem todas. Algumas regrediram, como a de participação político-eleitoral de artistas. A lei desandou, no ponto.

A questão não é rasteira, meramente técnica. Ela se situa no planalto dos direitos essenciais. No confronto entre a cidadania em geral, a do artista em particular, e dos direitos das pessoas de terem acesso às manifestações de preferência política umas das outras. Conecta-se ao binômio pluralismo e democracia por meio do elo da liberdade de expressão.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 19, diz: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.” O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, inseminado na ordem jurídica interna em 1992, enuncia, em seu artigo 19, conteúdo análogo. O mesmo teor está no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969, admitida no nosso sistema em 1992. Coroando essas camadas de proteção, a Constituição Federal, em seu artigo 220, § 2º, impõe: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” Calar artistas é censura. Óbvio.

Tudo isso, porém, parece ser de pouca força quando confrontado com a regra do artigo 39, § 7º, da Lei 9.504/97, que rege as eleições. Esse comando afirma: “É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral.” O texto é civicamente agressivo. Exclui a classe artística do processo eleitoral, sem que haja qualquer exceção constitucional expressa quanto a isso. Se o intento dele é o de impedir que artistas sejam contratados por candidatos mais abastados, elevando os custos das campanhas, e, por consequência, desigualando oportunidades competitivas, não faz sentido algum obstar que eles compareçam voluntária e graciosamente a qualquer tipo de encontro. Ou que os promovam.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e os Tribunais Regionais Eleitorais jamais declararam a incompatibilidade desse cerceio de liberdade artística garantida pelas cláusulas acima enunciadas. Pelo contrário. O que se vê na jurisprudência é a aplicação linear dessa disposição limitadora de direitos fundamentais. Em 2018, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5970, houve um pedido de liminar para suspender esse preceito, mas ainda não se decidiu sobre isso. Recentemente, em 28.08.2020, o TSE deliberou, por unanimidade, que tais eventos com artistas não poderiam ocorrer, sequer na forma virtual, as “lives” (Consulta nº 060124323). Nessa mesma passada, o TRE do Rio Grande do Sul, em 22.10.2020, manteve a sentença que proibiu a realização de um evento de arrecadação de campanha, a ser promovido por Caetano Veloso, em favor de candidatos de seu apreço (Recurso Eleitoral 0600032-66.2020.6.21.0161). O TRE afirmou que o objetivo da disposição é vedar “todo e qualquer tipo de apresentação de artistas em geral, sejam eles circenses, bandas, cantores, cozinheiros ou artistas de rua, que possam, por meio da celebração de sua arte, atrair público e eleitores que o evento eleitoral, por si só, não seria capaz de reunir.”

O apoio da literatura técnica especializada a essa diretiva legal é maciço. Ora a doutrina jurídica assevera que a proibição busca impedir que as celebridades influenciem o eleitor (seria o cidadão um incapaz?), ora a justifica na proibição de abuso de poder econômico (mesmo em eventos com participação gratuita?), ora no receio de descaracterização do evento eleitoral (a arte é incompatível com a política?), ora silencia pura e simplesmente. Há exceções. A professora Marilda Silveira, do Instituto Brasiliense de Direito Público, em texto publicado no Blog do Fausto Macedo, lembrou que a Lei 9.504/97 contém proibições demasiadas à liberdade de expressão e muitas incongruências. Ela não enxerga a vedação referida como suficiente para impedir os eventos de arrecadação, que são expressamente regrados em outro lugar da lei, declarando a sua desconfiança quanto à constitucionalidade dessa proibição. É uma voz a ser ouvida.

Tomara que os tribunais mudem a sua perspectiva, filtrando a interpretação legal com os vetores liberais das convenções subscritas pelo Brasil e da Constituição. Se a campanha de Tancredo fosse hoje, Fafá não poderia cantar nela. Inacreditável.