ARACAJU/SE, 28 de abril de 2024 , 14:58:16

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O primeiro Código Eleitoral

Vitoriosa a Revolução de 1930, foram fechados todos os parlamentos nacionais. O Congresso Nacional, as assembleias legislativas e as câmaras municipais foram dissolvidas. Os governadores e prefeitos foram afastados. Nenhum poder eleito precedente ao movimento golpista vitorioso sobreviveu. Só Getúlio Vargas, chefe da nação, ditador plenipotenciário, regrava. Ele nomeava os interventores estaduais, que, por sua vez, nomeavam os administradores municipais. Era assim que funcionava.

Ocorre que havia compromissos – fracos, embora – que justificaram a adesão de alguns dos que participaram do movimento revolucionário. Diz-se fracos porque nada poderia, em princípio, coagir o ditador a cumpri-los, exceto uma contrarrevolução mais forte do que a dele, ou que impusesse um custo que ele não estivesse disposto a pagar.

Dois acordos políticos eram especialmente significativos: o de uma nova legislação eleitoral e o de uma nova constituição. Para que esta fosse possível, era necessário eleger os constituintes. E, para eleger os constituintes, sem os vícios dos pleitos da República Velha, que justificaram retoricamente o movimento revolucionário, era preciso um novo arcabouço jurídico.

Vargas, na ausência do poder legislativo, era o legislador pleno. Para subsidiá-lo, criou uma “Comissão Legislativa”, com participantes por ele indicados, dividida em subcomissões temáticas para a elaboração de leis específicas novas (Decreto 19.459, de 6 de dezembro de 1930). Uma delas, era a do novo paradigma eleitoral, composta por Joaquim Francisco de Assis Brasil, João Chrysóstomo da Rocha Cabral e Mario Pinto Serva (Decreto 19.684, de 10 de fevereiro de 1931). Os três eram autores de monografias celebradas em matéria de direito eleitoral e político, e, mais importante, militaram em partidos de oposição, no regime derrubado pelo golpe.

A comissão, coordenada por Assis Brasil, não teve vida tranquila. Seu coordenador, que também era ministro da Agricultura, foi nomeado para missão diplomática na Argentina, Cabral ficou no Rio de Janeiro e Pinto Serva em São Paulo, o que impedia as reuniões necessárias. O diálogo entre os membros era complicado. A construção do texto foi se demorando, o que, para o ditador, era conveniente: sem lei eleitoral, sem eleições. Sem eleições, sem constituinte. Sem constituinte, sem constituição. Sem constituição, poderes totais.

Vozes na opinião pública punham-se contrárias a essa marcha lenta, cobrando objetividade e ressaltando o caráter emergencial da legislação eleitoral esperada. Depois da constituição, uma obra legislativa duradoura, talvez; antes, impossível, já que a própria constituição estabeleceria princípios a serem observados, que não poderiam ser integralmente previstos pelos notáveis.

Ao final, foi entregue, em agosto de 1931, um anteprojeto pela Comissão, designado “Registro Cívico Nacional”, com 222 artigos. As críticas foram muito duras. A começar pelo fato de que, depois de tanto tempo, o texto final copiava, além do nome, imensas partes da lei eleitoral do Uruguai (calcula-se que mais de 180 artigos foram traduções), em óbvio plágio. Ainda que se possa falar em adoção de modelos, como disse Assis Brasil em defesa do trabalho, o fato é que a importação de ideias foi maciça e não deixou de chocar os observadores mais atentos e esclarecidos.

Vargas, então, estava com uma minuta de lei, que lhe competia outorgar. Ao invés disso, resolveu ampliar a Comissão – na prática criar um novo comitê -, para revisar aquilo que fora feito por Assis Brasil, Cabral e Serva. Designou para tanto o ministro da Justiça, Maurício Cardoso, como coordenador de um grupo que reunia juristas e políticos: Octávio Kelly, Sérgio Ulrich de Oliveira, Adhemar de Faria, Sampaio Dória, Mário de Castro, Juscelino Barbosa e Bruno de Mendonça Lima.

Esse grupo, então, trabalhou sobre as bases postas no anteprojeto de “Registro Cívico Nacional” e enfrentou algumas polêmicas internas, como é de se esperar em qualquer trabalho colegiado. Divulgava-se, por conta disso, votos vencidos nos debates em jornais, a fim de publicizar aquilo em que cada membro divergia. Ao final, após 13 reuniões em menos de dois meses, em fevereiro de 1932, foi entregue ao ditador um anteprojeto, que revisava o anterior.

Vargas, sem alternativa, recebeu o material. Mas, antes de assiná-lo, colheu de alguns aliados mais próximos, como Batista Luzardo, Barros Casal e Borges de Medeiros, outras colaborações e fez, ele mesmo, considerações de trato político: qual regra favoreceria a formação de uma bancada constituinte mais próxima de seus desejos? Esse era o quesito que geria a sua análise e suas incisões e enxertos.

Ao final, nasceu, por meio do Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, o primeiro Código Eleitoral do Brasil. Essa lei contemplava algumas inovações importantes: a) a instituição do voto feminino (art. 2º); b) a representação proporcional (art. 56); c) a criação da Justiça Eleitoral (art. 5º), com um Tribunal Superior, Tribunais Regionais e os juízes estaduais das comarcas assumindo funções eleitorais, mas com garantias de autoridades federais; d) o estabelecimento do voto secreto (art. 56); e) a previsão do alistamento obrigatório, sob pena de sanções civis (art. 119); f) a fixação de regras para o registro prévio de candidaturas (art. 36); e g) a referência ao voto em branco (art. 58, item 11º).

Há, inclusive, quem afirme que o voto se tornou obrigatório, pois era mister constar do título de eleitor a anotação de que o portador houvera votado no pleito precedente (art. 81, item 8º). Como o próprio título tornara-se um documento essencial para o exercício dos direitos civis, o ato de votar também seria assim considerado, embora isso não estivesse explícito.

A lei também trouxe uma inovação tecnológica: a possibilidade de uso da máquina de votar (art. 58, item 15º), que dispensava a cédula eleitoral. Eis aí a ancestral da urna eletrônica.

Também foi estabelecida uma representação classista para a constituinte (art. 142), a ser fixada por ato governamental posterior. Pelo Decreto 22.621, de 5 de abril de 1933, que materializou o Regimento Interno da Constituinte e sua composição, das 254 cadeiras fixadas, 40 foram reservadas a sindicatos e associações. 

Há omissões relevantes, evidentemente: a elegibilidade de mulheres não estava claramente expressa (o que, diga-se de passagem, não impediu que houvesse candidaturas femininas para a Constituinte de 1934, sendo eleitas Carlota Pereira de Queirós e Bertha Lutz, esta suplente, que depois assumiu, em 1936, a cadeira de deputada). A forma de financiamento das disputas e a própria disciplina das campanhas não teve desenvolvimento no corpo desse diploma. Entretanto, essas elipses não eliminam o mérito das regras em relação ao sistema que lhe precedeu. Muito desse acervo de inovações permanece até hoje, adaptado às circunstâncias do tempo presente. 

Isso porque as regras costumam durar pelo tempo em que as valida a sociedade por elas disciplinada. O que foi novo ontem, será antigo em alguns anos, mas sempre pode haver, no que agora existe, ecos do que soou distante.