ARACAJU/SE, 15 de outubro de 2024 , 0:14:04

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O voto da cachorrada

Roberto de Quincas de Zé Peixoto estava cansado de perder eleições. Candidatara-se cinco vezes a prefeito, e nada. Levou cinco surras. Na última, porém, quase deu. Passou raspando. Perdeu por seis votos. Uma maracutaia de Chico Brito, o escrivão eleitoral, que colocava nas mesas apuradoras de votos só gente de Rodolfo Carniça, chefe político contrário, que se acostumara a ganhar eleições no avaluemos. Os apuradores de votos registravam dados incorretos nos boletins de apuração. Viciados. Rico, o Carniça comprava os votos dos eleitores bestas. Ladino, corrompia Deus e o mundo. Só não corrompeu o Dr. Tenório Bueno de Castro, juiz eleitoral da 36ª Zona, da qual o minúsculo Município de Campo Redondo fazia parte. Justamente na última eleição, que Roberto de Quincas quase chegou lá.

Naquele ano, após cinco derrotas, Roberto de Quincas desistiu de concorrer à Prefeitura Municipal. Estava exausto. Mas, precisava arranjar um candidato de valimento, para derrotar Mundinho de Mariinha, genro de Chico Brito, que iria suceder a Zé Godoy, primo-irmão do todo-poderoso Rodolfo Carniça. Mundinho de Mariinha era afilhado de batismo do todo-poderoso. Candidato escolhido a dedo, para o velho Rodolfo continuar mandando na Prefeitura. A UDN sempre de cima.

Iam se aproximando os dias das convenções partidárias e Roberto de Quincas não tinha definido o candidato para apresentar ao Partido. Aliás, o Partido era ele, como, ademais, ocorria com todos os outros Partidos e em todos os lugares. Cada Partido, um líder; cada líder, um dono. Procura daqui e procura dali, eis que cinco nomes foram sugeridos pelos amigos mais chegados. Um, Fernandinho Jurema, dono da única farmácia da cidade O segundo, Aniceto Boca Preta, fazendeiro que, segundo o dito popular, amarrava um boi em cada touceira de capim sempre-verde. O terceiro, Bililiu de Maria de Terto, jovem apessoado, de família endinheirada, mas metido a gaiatices com mulheres casadas, ou seja, um candidato a ser fustigado. O quarto, Dominguinhos de Antônio Cascudo, um sargento reformado da Polícia Militar, que enriqueceu sabia Deus como, e era vereador há três mandatos. O quinto nome era do médico Américo Fagundes de Lira, recém-formado, de namoro com uma neta de Roberto de Quincas, igualmente médica, e que atuava, ao lado da namorada, na Casa de Parto Nossa Senhora das Candeias, ali mesmo em Campo Redondo.

Conversa vai, conversa vem, torna a ir e a voltar, eis que o médico foi escolhido como candidato a prefeito, tendo Aniceto Boca Preta como candidato a vice-prefeito, cabendo-lhe derramar a grana necessária para angariar votos, quanto preciso fosse. Nas hostes pessedistas, dava-se como certa a vitória do candidato de Roberto de Quincas. Alvoroço na banda dos udenistas. Acossado, Rodolfo Carniça prometia esmagar o “doutorzinho”. Ganharia mais uma contra a cambada de Roberto de Quincas. Nem que precisasse entornar o caldo. E entornar o caldo era o que ele sabia fazer muito bem.

A campanha política desenrolou-se com alargado acirramento. Os dois Partidos lançaram-se à cata ou à compra de votos, cada qual mais contundente. Houve atritos entre cabos eleitorais e eleitores. Gente besta a brigar por causa da política. A UDN governava o Estado e a Prefeitura. A Polícia prendia quem queria do lado oposicionista. O cabo do destacamento policial chegou a dar voz de prisão ao médico-candidato, na Casa de Parto, alegando omissão do mesmo em não internar a cadela Pituxa, da rapariga do cabo, Marielze Tanajura, como se gente a quadrupede fosse, e tendo apresentado sangramento pós-parto, após dar cria a seis cãozinhos. Foi um bafafá da moléstia. Alterado, o cabo vociferou: “Cadela também é ser humano, seu doutô!”.

Nas ruas, a notícia correu e o povo não perdoou: “O cabo quer registrar a cachorra da rapariga como eleitora do lado de Rodolfo Carniça”. Foi quanto bastou. O PSD mudou o lema da campanha de “Tempo Novo em Campo Redondo” para “Só cachorro vota no candidato de Rodolfo Carniça”. Foi pau e casca. O médico ganhou de lavada: 2.319 votos contra 889. Nunca mais Rodolfo Carniça ganharia uma eleição. Até porque, alquebrado nos seus 86 anos, morreria dois anos depois.