ARACAJU/SE, 19 de abril de 2024 , 3:34:08

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Os que falam mal do rei

No Livro V das Ordenações Afonsinas, datadas de 1436, consta o Título III: “dos que dizem mal d’El Rey”. Pelo regramento, quem maldissesse a figura real deveria ser julgado pelo próprio soberano ou por quem ele indicasse. A pena deveria ser dada em conformidade com a pessoa e as condições em que pronunciou a ofensa. A norma foi reiterada pelas Ordenações Manuelinas, de 1521, e Filipinas, de 1603. No Brasil independente, sua mensagem entranhou-se na Constituição do Império, que afirmava que a pessoa do Imperador era sagrada (artigo 99). O Código Penal de 1830 previa, para as calúnias e injúrias ao Imperador, o dobro da pena prevista para os mesmos delitos contra os súditos. Algo dessa ideia sobrevive na vigente Lei de Segurança Nacional (Lei 7.710/83), oriunda de tempos democraticamente mórbidos.

Algumas notas são reveladoras da inconsistência democrática da LSN. Em seu artigo 1.º, ela fixa a sua incidência nos crimes que lesam ou expõem a perigo (I) a integridade territorial e a soberania nacional, (II) o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e (III) a pessoa dos chefes de poderes da União. Igualar três indivíduos aos outros dois bens jurídicos é uma espantosa irreverência ao regime republicano. É o delito de lesa-majestade mal disfarçado.

Alguém poderia supor: um ataque a tais autoridades é uma ofensa ao próprio país. Talvez retoricamente isso seja válido, por metonímia. Juridicamente, não. Para a proteção dessas pessoas, a legislação comum já serviria suficientemente. Não há a necessidade de colocar indivíduos específicos e a própria nação no mesmo patamar. Todavia, se dúvidas houvesse, seriam debeladas pelo artigo 26, que é o suprassumo do delírio inconstitucional. Ele diz que caluniar ou difamar o Presidente da República, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados é crime com pena de um a quatro anos. Os mesmíssimos crimes de calúnia e difamação são previstos no Código Penal, com penas de seis meses a dois anos, no caso daquela, e de três meses a um ano, no desta (artigos 138 e 139). Existem, inclusive, criticáveis causas de aumento de pena do Código Penal, que abarcam as ofensas ao Presidente da República e aos demais funcionários públicos todos (artigo 141). Ou seja, no ordenamento jurídico brasileiro existem diferenciadas ordens de proteção de reputação: a dessas autoridades e a das demais pessoas.

Com base nessas regras, há poucos dias, o Ministro da Justiça, usando a autorização dada pelo artigo 31, inciso IV, da mesma LSN, requisitou a abertura de investigações contra um cartunista e um jornalista, e, depois, em desfavor de um articulista. Os primeiros, por causa de uma charge em que o Presidente da República convertia uma cruz hospitalar em uma suástica. O segundo, por conta de um texto opinativo, no qual expressava o desejo que o Presidente da República morresse de Covid-19.

Para o direito, nesses casos, não interessa nem o bom, nem o mau gosto das ideias, nem o posicionamento político de quem as desenha, escreve ou as lê. Se a sociedade é democrática, é simplesmente inconcebível que a pessoa do Presidente da República, ou dos chefes dos demais poderes, goze de proteções penais não isonômicas, que os diferenciem injustificadamente dos demais cidadãos. Eles estão desnivelados até mesmo dos seus “iguais”: nem os demais parlamentares, nem os outros ministros do STF, nem o vice-presidente da República têm tal amparo penal especial.

É bom recordar que não é de hoje que a LSN vem sendo manejada tortuosamente. Ela tem sido usada inclusive como forma de coibir protestos. Em 2013, atos de vandalismo contra uma viatura policial, em São Paulo, foram enquadrados no art. 15 da LSN, que protege bens militares. Noutro, em 2016, agressões contra bens públicos, ocorridas em uma manifestação contra a aprovação de uma proposta de emenda constitucional, em Brasília, teve presos indiciados por violação ao artigo 20 da LSN: depredação por inconformismo político. Os casos são de óbvia incidência da lei penal comum e a invocação da LSN é nitidamente abusiva.

A LSN também está em evidência por conta dos movimentos pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, a favor de um “novo AI-5”. Vê-se, nesse cenário, que ela tem usos juridicamente contraditórios. Ao tempo em que é invocada contra liberdades públicas de manifestação, cujos excessos já encontram inibição em normas penais comuns, é também suscitada contra evidentes ameaças à ordem democrática. Quando um texto legal admite tamanha ambiguidade, ele reclama atividade legislativa de ajustamento ou judiciária de reconhecimento de sua imprestabilidade.

É surpreendente que, após mais de trinta anos de vigência da Lei Maior de 1988, em suas respectivas órbitas, nem o Congresso Nacional (que jamais alterou uma só palavra dessa lei), nem o Supremo Tribunal Federal (que nunca declarou que qualquer parte dela seria incompatível com a Constituição), tenham fulminado esse entulho ditatorial pernicioso. Se não completamente, pelo menos nas partes claramente acintosas ao próprio regime democrático, que a hipocrisia discursiva da redação legislativa invoca como seu fundamento.
É indispensável falar mal dessa lei e desses reis.