ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 3:33:58

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Palmares 451

Este é um texto sobre empatia. Seres humanos são empáticos. Normalmente são. Diante do sofrimento de outro humano, costumam entender a aflição. Trata-se de uma característica expansiva, que alcança a natureza ao redor. Há quem sofra intensamente quando enxerga maus-tratos à fauna e à flora. Quase todo mundo é assim. Gente que gosta de animais fica aterrorizada quando o noticiário revela um caso extremo e expõe a violência contra um bichinho. Esse sentimento também alcança objetos. Pessoas que gostam de livros sentem coisas parecidas quando tomam conhecimento de que bibliotecas serão mutiladas. Este artigo é dedicado a elas.

Com perplexidade, os bibliófilos souberam que a direção da Fundação Palmares resolveu excluir do seu acervo bibliográfico centenas de obras. Segundo um relatório de verificação dos títulos da biblioteca da entidade, designado “Retrato do acervo – Três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, várias obras seriam doutrinárias e desviantes. Os termos para elas são: “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos’”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”. Por isso, os tomos assim classificáveis serão descartados desse conjunto. 

Dentre as obras banidas estão “Almas mortas”, de Nicolau Gogol, “10 dias que abalaram o mundo”, de John Reed, “Dicionário do folclore brasileiro”, de Câmara Cascudo, e “O tenentismo em Sergipe”, de José Ibarê Costa Dantas. Difícil encaixá-las nos critérios indicados. Nenhuma biblioteca do mundo dispensa Gogol. Nenhum texto jornalístico relevante deixa de ter uma dívida com John Reed. Não se entende antropologicamente o Brasil sem Câmara Cascudo. Ibarê Dantas é um orgulho intelectual sergipano, um dos maiores cientistas sociais brasileiros, estudioso do tenentismo como poucos. Não há nada nesses textos que indique que sejam prescindíveis. Assim também os demais constantes do rol expurgado. Uma biblioteca boa é necessariamente uma babel de tendências. Alguém imagina que a Biblioteca do Vaticano não possui livros de outros credos?

Segundo a Fundação Palmares, os livros excluídos serão doados, embora não se tenha dito a quem. O disparate de supor uma biblioteca pública censurada é tão grande que se espera que o Ministério Público, curador do patrimônio público e das fundações, em particular, tome, sem tardança, a iniciativa de dar cobro a essa manifestação estapafúrdia e antipluralista. Muitas entidades sociais já estão em movimento contra esse gesto de intolerância. O direito protege a diversidade de opiniões, cosmovisões, religiões, modos de vida e tudo o mais quanto possa a humanidade conceber na sua busca por felicidade. O nome disso é democracia e consta do artigo inicial da Constituição de 1988.

É inevitável fazer uma associação entre esse episódio e a clássica distopia Fahrenheit 451, escrita, em 1953, por Ray Bradbury. Nessa narrativa, numa sociedade futurista, livros não são permitidos e é dever dos bombeiros incinerá-los a fim de evitar que suas ideias possam causar mal-estar. Substituem-se todos os livros por imagens na televisão, cada vez mais interativa. Trata-se, como toda distopia, de um exercício imaginativo fundado em traços característicos da sociedade do presente vivido pelo autor da obra e que são extrapolados numa fantasia reveladora dos perigos contidos neles.

Livros são realmente perigosos. Eles são passaportes para o pensamento de outra pessoa. Uma passagem aprofundada no universo intelectual do outro. Se é verdade que uma imagem vale mais do que mil palavras, livros contém muitos milhares de vocábulos. Logo, valem mais do que muitas imagens.

Existe algo além de papel e letras em jogo: há uma simbologia em causa. Sempre que livros são atacados, vem à lembrança a grande queima deles, ocorrida na Alemanha, em 10 de maio de 1933. Autores como Stefan Zweig, Sigmund Freud e Thomas Mann foram sacados das prateleiras e seus volumes empilhados em grandes fogueiras. Uma das justificativas nazistas foi verbalizada pelo poeta Hans Host: era a “necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”. Soa familiar? 

Em lembrança dessa noite fatídica, uma instalação permanente do artista israelense Micha Ulman foi feita na Bebelplatz, em frente à Universidade Humboldt, em Berlim. Chama-se “A biblioteca vazia”. No chão da praça, entre os paralelepípedos, por um vidro, olhando-se para baixo, é possível ver estantes desocupadas. Ao lado, uma placa, com a citação profética do poeta Heinrich Heine, feita em 1820: “Foi apenas um começo. Onde se queimam livros, pessoas serão queimadas ao final também”. Heine, claramente, sentia empatia. Por livros e por pessoas.