ARACAJU/SE, 19 de abril de 2024 , 19:37:27

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Uma peleja sem fim

 

Em 2014, foi republicada, pela Editora Objetiva, uma coletânea de crônicas inesquecíveis de Carlos Heitor Cony, sob o título “O ato e o fato”. Consumado o Golpe de 1964, Cony fez de sua coluna no Correio da Manhã uma trincheira. Nos primeiros dias de abril, a quente, chamou as coisas pelo nome: quartelada, Revolução dos Caranguejos, Golpe de 1.º de Abril. Diante das violências da nova direção nacional, não poupou aos fardados as analogias com os gorilas e não disfarçou a repugnância que sentia de que homens treinados para manejar armas fossem os tutores da ordem política nacional.

Essa coragem peculiar o levou aos tribunais, como réu. O então Ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, que houvera participado do chamado “Comando Revolucionário”, processou-o pela infração prevista no artigo 14 da Lei 1.802/53 – Lei de Segurança Nacional (LSN). Essa regra dizia que provocar animosidades entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as classes ou instituições civis, era conduta punida com reclusão de 1 a 3 anos.
Costa e Silva instou Oswaldo Trigueiro, Procurador-Geral da República (depois ministro do Supremo Tribunal Federal), que demandou que se denunciasse Cony como incurso na Lei de Imprensa (LI). Mas a denúncia foi oferecida pela promotoria com base na LSN e recebida, como tal, pela 12.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Designada a audiência para ouvir o suposto ofendido, esta se realizou em 8 de setembro de 1964, no gabinete ministerial. Só isso já revela o non sense do processo: a Justiça foi até o interessado, não o contrário. Vigorava, ademais, o Ato Institucional nº 1, cujo art. 7º suspendeu as garantias da estabilidade e vitaliciedade. Tradução: os juízes poderiam ser demitidos ao líbito do poderoso plantonista, se desagradado.

Embora encurralado, Cony tinha uma defesa qualificada: Nelson Hungria, considerado o maior de todos os penalistas brasileiros. Não há biblioteca jurídica que não suspire pelos volumes dos seus Comentários ao Código Penal. Fora juiz e galgou assento no STF. Já aposentado e advogando, endereçou um habeas corpus (HC) à Suprema Corte exigindo que o réu fosse processado nos termos do artigo 9º da Lei 2.083/53, que era a LI de então. Esse dispositivo afirmava que fazer propaganda de processos violentos para subverter a ordem política e social era abuso punido de um a três meses de detenção. A diferença de tratamento legal era substancial: as penas eram bem menores que as da LSN.

As redações dos dois textos legais que concorriam por sua incidência não eram idênticas. Isso era um bom tema de debates. Aquela era uma das mais luminosas composições do STF de que se tem notícia. Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Victor Nunes Leal e outros grandes juristas tinham cadeira no colegiado. O processo foi tombado (HC 40.976/GB) e distribuído ao Ministro Gonçalves de Oliveira. No julgamento desse pedido, ocorrido em 23 de setembro de 1964, o Relator começou por invocar, à guisa de precedente, o caso dos jornalistas Prudente de Moraes Neto e João Portela Ribeiro Dantas (HC 37.522/DF), defendido por Prado Kelly (que também seria ministro do STF), julgado em 1960. Nele, o então ministro Nelson Hungria, relator, mudou o seu entendimento de que deveria prevalecer a LSN e passou a julgar que os jornalistas se submetiam à LI. Depois, foi referido o HC 40.047/DF, relatado pelo Ministro Ribeiro da Costa, impetrado por Sobral Pinto em favor de Hélio Fernandes, que teve desfecho semelhante, em 1963. Considerada essa jurisprudência, o STF, por maioria (8×2), deferiu o que para Cony era suplicado. Os votos vencidos, dos ministros Pedro Chaves e Vilas-Boas, entendiam que incidia a LSN e, se esta não era cabível, o fato, por não se encaixar na LI, não seria crime algum.

Pouco depois, Cony foi injustamente condenado a três meses de prisão. O “cala a boca”, contudo, não surtiu efeito. Em uma reunião da Organização dos Estados Americanos, ocorrida em novembro de 1965, diversos intelectuais se reuniram à porta do Hotel Glória, onde o evento se realizava. Cobravam coerência da instituição, que não admitia que esses encontros se realizassem em países não democráticos. O Presidente Castelo Branco foi vaiado. Essa vaia rendeu para Cony a cadeia, na companhia de Antônio Callado e Glauber Rocha. Solto, não cedeu. Anos depois, imediatamente após o Ato Institucional nº 5, Cony foi novamente preso.

Já não há mais LI alguma. A última, a Lei 5.250/67, não foi recepcionada pela atual ordem constitucional, conforme decidido pelo STF na ADPF 130, relatada pelo Ministro Ayres Britto, justamente por constituir entulho autoritário. É evidente que como qualquer profissional o jornalista pode se exceder e deve responder pelos delitos que eventualmente pratique. Mas isso deve ocorrer na forma da lei comum. O que se estranha é que, em tempos democráticos, tantos anos depois, articulistas ainda tenham de responder inquéritos lastreados na vigente LSN (Lei 7.170/83). Provavelmente, Cony, vivo ainda fosse, seria réu novamente e teria de pelejar outra vez.