ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 11:55:16

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A história da polícia que mata e o governador que “não está nem aí” para graves violações de Direitos Humanos

O jornalista Caco Barcellos lançou em 1993 o livro “Rota 66: a história da polícia que mata”, denunciando a atuação da ROTA – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, fruto de uma criteriosa investigação acerca dos métodos utilizados por este batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo entre as décadas de 1970 e 1980, recolhendo farto material probatório (laudos periciais, fotografias, documentos, depoimentos de testemunhas, relatórios, petições processuais, etc.), demonstrando como às vezes o aparato policial pode ser utilizado como um verdadeiro aparelho estatal de extermínio.

O premiado repórter aponta a existência de um “esquadrão da morte” mantido dentro da PMSP, havendo acobertamento por superiores das condutas deste grupo policial, atuando referidos agentes públicos com o incentivo de parte da classe política e da mídia que utiliza um discurso populista de suposta preocupação com a segurança pública e combate a criminalidade, minimizando e até ridicularizando a defesa dos direitos humanos.

Eis que em pleno 2024 tudo indica que os métodos utilizados pela ROTA, responsáveis pela morte de centenas de inocentes, calcados na ausência de técnica adequada na abordagem policial, atirando primeiro, perguntando depois, investigando quando possível e condenando pretos e periféricos, sempre, voltaram com força total.

A “Operação Verão” deflagrada pela PMSP na baixada Santista já conta com 55 mortes até a data da publicação deste artigo, sendo alguns casos inusitados e de difícil compreensão, como a troca de tiros com pessoa deficiente visual, a alegação de legítima defesa com mais de 70 tiros disparados contra um único morador desarmado, dentre outras anomalias.

Em razão da suspeita das gravíssimas violações aos direitos humanos, a ONG Conectas e a Comissão Arns, ofertaram denúncia perante o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU, apontando referidos abusos. Ao ser questionado acerca desta providência, o governador de São Paulo limitou-se a afirmar que “A pessoa pode ir para a ONU, para a Liga da Justiça, para o raio que o parta, eu não estou nem aí”.

Cuida-se de verdadeiro escárnio, demonstrando o governante com esta declaração toda a sua cultura autoritária e de baixa valorização da dignidade da pessoa humana, não estando o gestor do maior estado da federação apto sequer a ponderar acerca da existência de eventuais excessos praticados, defendendo métodos de atuação policial obsoletos, obscuros, cruéis e, por conseguinte, vetados por diversos Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário, além de coibidos pela Constituição Federal e pela própria legislação interna brasileira.

O combate à criminalidade não é uma arena de “vale tudo” em que se permitem execuções sumárias em nome da lei e da ordem, com a utilização de um discurso populista, surrado e atemorizador. Muito ao contrário, a adoção de métodos modernos de investigação e enfrentamento da delinquência, inclusive do crime organizado, exige inteligência, tecnologia e muito preparo, sendo o uso da força a ultima ratio, justificável em casos extremos e não a prima ratio que transformou o Brasil em campeão de índices de letalidade policial, situação vexatória que cresce a cada ano.

A população no meio deste fogo cruzado assiste atônita e, muitas vezes, teleguiada por políticos populistas e inescrupulosos que se valem do discurso fácil de uso da força como forma de combate à violência, porta-se como “uma vítima ávida por mais vitimização”, como de forma arguta detectou o professor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, grande mestre de criminologia e do direito penal.

Impressiona que até avanços tecnológicos de relevância indiscutível, como o uso de câmeras corporais acopladas aos uniformes dos PMs, são criticados por parte dos integrantes da corporação e dos próprios políticos, afirmando novamente o governador de São Paulo em entrevista a uma rede de televisão que “câmera corporal em PMs não é eficaz em dar segurança ao cidadão”, mesmo havendo comprovação que a letalidade policial caiu em 80% (oitenta por cento) nos batalhões que a adotaram.

Qual a dificuldade de tornar obrigatório referido equipamento para todos os policiais em trabalho ostensivo? O que impede as autoridades públicas de darem declarações assertivas no sentido de que o combate à criminalidade deve ocorrer dentro dos padrões éticos, constitucionais e legais? Porque esse tema sempre está atrelado a uma vulgarização da defesa dos direitos humanos? A quem interessa o uso político desta questão?

São muitos os questionamentos a serem enfrentados e até que tenhamos respostas satisfatórias, com esses dirigentes que minimizam a letalidade policial, estimulando práticas nefastas, arbitrárias e completamente contrárias a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), a manutenção de relações internacionais que objetivem a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CF) e a vedação a tortura e a qualquer outro tratamento cruel, desumano e degradante (art. 5º, III, CF), resta-nos esperar que os julgamentos das cortes e organismos internacionais de proteção dos direitos humanos imponham uma coima ao país.

Foi o que aconteceu recentemente com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da “Operação Castelinho”, envolvendo a Polícia Militar de São Paulo. Em uma abordagem realizada no ano de 2002, foram disparados mais de 700 tiros contra um ônibus, resultando na morte de 12 pessoas supostamente vinculadas ao PCC.

Durante as investigações constatou-se que as vítimas não possuíam antecedentes criminais, inexistindo comprovação de qualquer envolvimento com o crime organizado, sendo que a apuração policial dessa chacina deu-se com a alteração da cena do crime e modificação ou sumiço das provas, além de uma tramitação processual errática e demasiadamente lenta, impedindo que os familiares das vítimas tivessem uma adequada prestação jurisdicional, resultando na absolvição dos 53 policiais militares denunciados perante a justiça do estado.

Os 43 familiares das 12 vítimas foram representados pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo e quando do julgamento do mérito da imputação a Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que as mortes equivalem a uma “execução sumária e extrajudicial”, planejada por agentes estatais, sendo lavrada sentença condenatória, obrigando o estado brasileiro a pagar indenização para os familiares das vítimas, além da adoção de providências no escopo de evitar a letalidade policial, como o uso de câmeras corporais, a implementação de dispositivos de geolocalização e registro de movimentos dos veículos policiais e o afastamento temporário de funções ostensivas dos policiais envolvidos em morte resultante de uma ação policial.

A mensagem da Corte Interamericana de Direitos Humanos é clara no sentido de não tolerar a existência de grupos de extermínio nas fileiras policiais, com o uso do pseudodiscurso de combate à criminalidade. É preciso fazer o policiamento ostensivo respeitando os direitos humanos, evitando a letalidade policial e cumprindo a Constituição Federal.

Existe um longo caminho a ser trilhado, servindo esta decisão como um alento no sentido de que “a força do direito deve superar o direito da força” como ensinava Rui Barbosa e a história da polícia que mata deve ficar num passado distante, ainda que os atuais governantes de forma sarcástica e irresponsável afirmem que não se importam com o problema.