ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 15:12:36

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Inteligência artificial, fake news e eleições

Fake News consiste em um neologismo utilizado para as notícias falsas ou fabricadas, especialmente em razão de sua rápida divulgação pela internet, valendo-se das inúmeras plataformas digitais, notadamente as redes sociais com grande potencialidade de disseminação, a exemplo dos aplicativos de mensagens WhatsApp ou Telegram.

Quanto maior a aparência de realidade, mais crível e de fácil circulação será a fake news, muitas vezes exigindo a análise de especialistas para comprovar que se tratar de uma falsidade, demandando criteriosa análise para desvendar a mentira.

As fake news isoladamente já configuram um grave problema ético e informacional, principalmente quando divulgadas acompanhadas de fotografias, áudios, vídeos e textos.

Referida potencialidade lesiva ficou evidenciada no último pleito eleitoral, quando inúmeros materiais de campanha foram acoimados de falsos (fakes), demandando intervenção da justiça eleitoral no intuito de evitar que o eleitor fosse ludibriado.

Esta situação se agrava exponencialmente com a utilização da Inteligência Artificial (IA) generativa, possível de ser definida como um dos ramos da IA que engloba um conjunto de dados armazenados em larga escala, com a possibilidade de utilização de diversos modelos de linguagens (escrita, falada, corporal, com animação, etc.) desenvolvidos para a criação de textos, áudios e vídeos, podendo ser apresentados ao público de forma a aparentar uma realidade que efetivamente não existe, eis que fruto de concepção artificial.

Pode-se citar, por exemplo, a utilização de vários vídeos de uma pessoa famosa e, portanto conhecida do grande público (um ator, político, cantor, jogador de futebol, jornalista, etc.) que após armazenar referido material (inúmeras horas de vídeo, áudio ou megabytes de texto), o programa de Inteligência Artificial desenvolve um vídeo, áudio ou fotografia, como se produzido por referida personalidade conhecida ou pública, quando em verdade cuida-se de uma informação falsa, pois referida pessoa concretamente nunca realizou aquela gravação ou posou para aquela fotografia.

O exemplo do comercial de uma montadora de veículos em que a cantora Elis Regina (falecida em 1982) canta com sua filha (Maria Rita) a célebre música “Como nossos pais”, contracenando na direção de um veículo da marca, aparece como algo emblemático e revelador do que pode ser produzido pela Inteligência Artificial.

Passa-se a conviver em um lusco-fusco entre o que é real e o que fictício e imaginário, sendo o material elaborado com o uso da IA concebido e produzido com enorme precisão e qualidade, desafiando a expertise de peritos.

No final do ano passado foram revelados graves ilícitos praticados por adolescentes em conflito com a lei que utilizaram programas de Inteligência Artificial para produzirem vídeos em cenas de sexo explícito ou fotos (nudes) envolvendo meninas que são colegas de escola (normalmente colégios privados frequentados pela classe média alta), sendo referidos fatos detectados em pelo menos quatro cidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Belo Horizonte).

Eis a perversidade humana utilizada em seu grau máximo, atentando contra reputação, honra, imagem e vida privada das pessoas (neste caso de adolescentes consideradas pela lei como vulneráveis) com um enorme potencial destrutivo, eis que todos os vídeos fake produzidos com o uso de Inteligência Artificial são veiculados nas redes sociais dos próprios alunos matriculados em referidas escolas, sendo rapidamente disseminados.

Não existe resposta na lei para referida situação. A aplicação de um direito penal analógico não alcança essa criminalidade digital com potencial destrutivo inimaginável para os legisladores e estudiosos das ciências criminais.

A situação é tão grave e relevante que o último fórum econômico mundial realizado em Davos na Suíça fez constar expressamente no Relatório de Riscos Globais (2024) que “as informações falsas ou distorcidas representam ‘o maior risco global no curto prazo’”.

O aumento da desinformação passou a preocupar diretamente os grandes capitalistas quando perceberam a possibilidade de canalização do uso da Inteligência Artificial nos processos eleitorais, implicando em eleições fraudadas e com resultados direcionados, alijando a vontade popular.

Os pleitos eleitorais correm sérios riscos de serem manipulados e conduzidos por mega programas de IA generativa baseados na mentira e na desinformação, fazendo predominar o interesse de determinado grupo político e econômico, atacando diretamente a verdade e corroendo a democracia.

Esse é um risco real de um problema extremamente sério e sem resposta jurídica à altura, posto que impossível falar em democracia, eleições livres, campanhas eleitorais dignas, sem a preservação e respeito da verdade factual. A mentira, a fraude e a desinformação não podem lograr a população e permitir que o resultado das urnas seja fabricado.

Preocupado com referida situação, até em razão dos casos surgidos nos últimos pleitos eleitorais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a discutir em audiência pública uma minuta de texto normativo alterando a Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019, que dispõe sobre propaganda eleitoral, para expressamente abordar a ilicitude na utilização de “conteúdo fabricado ou manipulado, em parte ou integralmente, por meio do uso de tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial”, devendo constar expressa advertência no material de propaganda veiculado que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e qual o tipo de tecnologia utilizada (art. 9º-B da minuta de Resolução).

A não observância de referida regra implicará na prática do crime eleitoral previsto no §1º do art. 323 do Código Eleitoral (inserido pela Lei nº 14.192/2021), sendo a conduta tipificada como “Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”, incorrendo nas mesmas penas àquele que “produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos”.

Registre-se que a pena de 2 meses a um ano ou multa, aumenta-se de 1/3 (um terço) até metade se o crime for cometido “por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social” (art. 323, § 2º, Código Eleitoral).

Embora expressamente previsto como crime, tem-se a fixação de uma pena absolutamente desproporcional e irrazoável para a gravidade de conduta que atenta contra a própria democracia, podendo com base na desinformação impedir a realização de eleições efetivamente livres.

Cuida-se de tema em aberto que demanda um sério debate e reflexão, não se afigurando como possível tolerar o uso de Inteligência Artificial para fraudar ou burlar a vontade do eleitor que pode ser motivado a votar ou deixar de votar em alguém por conta da desinformação veiculada em redes sociais durante o período de campanha eleitoral, depois de ter assistido um vídeo, visualizado uma foto ou escutado um áudio produzido com fake news.

Embora o uso da mentira e da falsidade não seja novo nas campanhas eleitorais (basta lembrar da eleição para o governo de São Paulo em 2018, quando foi divulgado um vídeo produzido após uma montagem, sendo largamente veiculado para induzir o eleitor paulista de que o candidato João Dórea participava de orgias sexuais).

O grande problema é que agora referido material de campanha em nome da mentira, da fraude e da ofensa encontra na Inteligência Artificial um aliado perigoso, pois produzido com perfeição, restando imperceptível para o leigo que se trata de uma fraude, colocando em risco à própria idéia de democracia.

Merece registro que embora não se possa deixar de utilizar a tecnologia cada vez mais imprescindível, veloz e necessária em nosso mundo, também não se afigura possível fechar os olhos para os inúmeros questionamentos que surgem com o avanço tecnológico, problemas diretamente vinculados a dilemas éticos, até porque a dimensão ética é própria do sujeito real e humano (aquele que age com dolo e é capaz dos atos mais sórdidos) e não da inteligência artificial, desprovida de qualquer percepção do certo e do errado, do moral e do imoral, do ético e do antiético.

Urge que o debate sobre o combate legal, sistemático e em tempo real ao uso de fake news, especialmente no processo eleitoral que podem ser potencializadas pelo emprego da Inteligência Artificial generativa, seja travado racionalmente, de forma científica e aprofundada, evitando-se a ausência de uma resposta estatal ou que surjam medidas desproporcionais e esquálidas para um problema real e de elevadas proporções.

Imperativo nesse debate a promoção de imediata regulamentação da matéria, estabelecendo-se sanções as big techs que lucram, e muito, com o acesso as redes sociais e a divulgação de tudo que é produzido e veiculado no mundo digital.

Deve-se buscar caminhos que evitem a propagação da desinformação e o uso de Inteligência Artificial na propaganda eleitoral alterando a verdade, sob pena de se estabelecer mecanismos que viabilizem a implementação de uma Fakecracia e tenhamos uma eleição que possibilite o governo da mentira.