ARACAJU/SE, 28 de abril de 2024 , 7:54:34

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O momento da perda patrimonial efetiva [inc. VIII, do art. 10, da Lei 8.429/92]

Ao art. 10 da Lei 8.429/1992 reservou-se a tarefa exclusiva de adornar os atos considerados de improbidade administrativas, praticados pelo agente público, que causam prejuízo ao erário. De todos que sobreviveram com os enxertos da Lei 14.230/2021, apenas um, justamente o inc. VIII, passou a exigir a perda patrimonial efetiva, na concretização do tipo ali alojado. Nos demais, o prejuízo se dilui no próprio tipo, dispensando uma alusão expressa.

No caso de introdução do elemento novo no inc. VIII, o ponto positivo do ajuste se justifica como forma de adequá-lo aos tipos da Seção II, onde o art. 10 reina, afinal, se está tratando de atos que importam em prejuízo ao erário, necessário o acréscimo aludido. Até aí o barco navega em mares calmos, só começando a ficar revolto quando se busca a ocorrência da perda patrimonial efetiva e do momento em que este se verifica, para que o dispositivo possa ser melhor assimilado, entendido e aplicado.

Antes de tudo, uma rápida observação. O tipo do inc. VIII, do art. 10, se divide em duas partes, sem as quais não se realiza. A primeira, repousa no processo licitatório ou no processo seletivo de parcerias com entidades sem fins lucrativos. Fiquemos apenas com o processo licitatório. A frustração à licitude o atinge, não importa as cores de que se forre. Basta a ocorrência da fraude se tornar realidade. A segunda, transformada em seu complemento, ou em sua motivação, se estampa na perda patrimonial efetiva. Indispensável que as duas pontas se amarrem, para se ter a conduta descrita no inc. VIII se tornar realidade.

Nada de anormal. Tudo bem claro. O problema desponta numa indagação surgida em sessão ampliada da quarta turma [do Tribunal Regional Federal da 5ª Região]: como ocorre a perda patrimonial efetiva, se o processo licitatório se encerra com a homologação do resultado? Enquanto nele se trafega, não há lugar para a presença de pagamento algum. A comissão de licitação não lida com dinheiro. Com a homologação, o trabalho da aludida comissão se encerra, a execução do contrato, desde a sua assinatura, já se faz com o comando de outro setor do ente público. Onde entra, então, portanto e afinal, a perda patrimonial efetiva? Na indagação, o nó.

Não custa lembrar que, na redação anterior, seja a original, seja a alterada pela Lei 13.019/2014, era comum, embora não fosse regra geral, suavizar a fraude o fato da obra do convênio/contrato ter sido plenamente realizada. Então, servia como atenuante, acarretando a imposição apenas de multa, com amargo sabor pedagógico. Quiçá – e é apenas um palpite -, o legislador tenha colocado o complemento em foco – perda patrimonial efetiva -, como forma de evitar a perda patrimonial presumida ou ficta. A perda deve existir, de fato, de verdade, robusta, visível, escancarada. Indispensável ser real.  Nada de supor, a teor do texto atual.

A Comissão de Licitação não lida com dinheiro em si, podendo lhe tocar, obliquamente, o superfaturamento na oferta dos preços, que termina sendo aceita pelo ente público. Contudo, apesar de ocorrida na licitação, não a integra, porque o ente público nada paga ao vencedor antes da assinatura do contrato. A não ser – e então o sorriso de Monalisa se transforma em moganga -, o legislador considerou que a perda patrimonial efetiva, embora nascida no processo licitatório, se consubstancia depois, quando a Administração passa a pagar um preço xx por uma obra que só vale x.

De fato, descascando a laranja, desabrocha a dúvida na possibilidade do acréscimo – perda patrimonial efetiva – ter sido encaixado com o fim primordial de evitar o argumento da perda ficta ou presumida. Talvez, talvez.  Assim laborando, fez nascer um sinuca de bico, a desafiar solução que dissipe qualquer incerteza, floresta de árvores e arbustos interligados, na qual não se pode caminhar.

De minha parte, não consigo, efetivamente, encontrar um fato que, já na licitação, cause o dano patrimonial efetivo. É factível plantá-lo no processo licitatório para colher a perda na execução do contrato dele advindo, quando, finalmente, entra na jogada o pagamento do ente público ao vencedor. Entretanto, não é na licitação, exatamente na licitação, que a perda patrimonial efetiva ocorre, mas adiante, quando já não é mais licitação, salvo situação que escape ao meu conhecimento, fica bem claro.

No frigir dos ovos, teria sido, como é, de fato, mais conveniente a retirada do inc. VIII, do art. 10, para compor o time do art. 11, ampliando a redação do inc. V, como improbidade que viola princípios da Administração, sem se fazer menção ao dano real. Do jeito que o texto da Lei 14.230 pariu, estabeleceu-se um impasse, no qual o acréscimo incluído desnorteou o aplicador da lei, por ser impossível calhar prejuízo real na licitação. Posso estar enganado. A discussão continua.

 

Vladimir Souza Carvalho

Magistrado – vladimirsc@trf5.jus.br