ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 18:03:41

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Um namoro sem futuro

 

Com a vigência das alterações introduzidas na Lei 8.429/92, pela Lei 14.230/21, criou-se o péssimo hábito de conferir a conduta desenhada no inc. V, do art. 11, a condição de soldado de reserva do inc. VIII, do art. 10. A origem repousa no fato de ambos os incisos cuidarem de licitação. O primeiro alude a processo licitatório; o segundo, a procedimento licitatório.   A licitação, então, despontou como visgo a atrair o segundo, quando o primeiro não se ajusta. 

Apesar do elemento comum, dir-se-á, sem maiores lucubrações, que se cuida de namoro que não dá em casamento: o primeiro aloja-se no art. 10, a cuidar de atos de improbidade administrativa causadores de prejuízo ao Erário; o segundo, se hospeda no art. 11, a focar os atos que atentam contra os Princípios da Administração.  Há pedra no trajeto.   

No entanto, não fica só aí. A dissecação dos dois dispositivos mostra cenários diversos. 

No inc. VIII, do art. 10, a conduta é sintetizada na conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva.  

A parte final, fruto da Lei 14.230, inspirou-se no fato de ocorrer muito processo licitatório fraudado, sem que ocorresse perda patrimonial efetiva. O serviço da licitação era realizado, os preços de acordo com o mercado, sem superfaturamento, embora fruto de processo licitatório devidamente fabricado, onde os concorrentes eram escolhidos a dedo.  

A punição que se dava ao infrator era de multa, com fins meramente pedagógicos. A Lei 14.230 sagrou tal conduta, exigindo a perda patrimonial efetiva, abrindo espaço para se provar que, mesmo com o processo eivado de ilicitude, o serviço foi religiosamente efetuado.  

Observava-se que a perda patrimonial efetiva abarcava o superfaturamento das propostas, que eram aceitas pela comissão permanente de licitação, ou, em outro exemplo, pela compra de algo com dispensa de licitação, o preço colocado lá em cima.  Não importava quem saia lucrando, porque a conduta se concentra na ilicitude do processo licitatório, ou sua dispensa em situações que a norma específica proíbe, resultando daí a perda patrimonial efetiva por parte da Administração. Esta, o ponto máximo.  

Já no inc. V, do art. 11, se direciona para outro norte, muito mais amplo que o anterior,  traduzida a conduta em frustrar, em ofensa a imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros. 

Aqui o fim da ilicitude do processo licitatório é a obtenção pelo servidor, delegado da Administração, de um benefício para ele, direto ou indireto, ou para terceiro. Esse benefício, é bom ressaltar, não se traduz em dinheiro, porque o art. 11, no qual o inc. V se agasalha, se volta apenas para os atos administrativos que violam princípios da Administração. Fosse participar da conduta o elemento dinheiro, a conduta se enquadraria no art. 9º ou no art. 10, nunca no art. 11.  

Por seu turno, o traslado do enquadramento, do art. 10 para o art. 11, encontra óbice no § 10-C, do art. 17. Nessa direção, a Lei 8.429 estabelece o momento em que não se pode mais modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor, materializado exatamente após a réplica do Ministério Público, ocasião em que juiz indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade imputável ao réu. Então, até a tréplica, sinal verde: pode. Depois da tréplica, com a tipificação do ato de improbidade, sinal vermelho: não pode. Desta forma, a tentativa, nos dias atuais, em feitos iniciados sob a regência da Lei 8.429 em sua redação original, e sentenciado antes da vigência da Lei 14.230 – 26 de outubro de 2021 -, também encontra bloqueio, por não ser mais possível qualquer alteração, a fim de evitar que o demandado seja surpreendido com mudança do tipo, o que implica em dizer, mudança também da conduta, por não se cuidar, no caso aqui abordado, de condutas com elementos exatamente iguais, visto que, de comum, o inc. VIII, do art. 10 e o inc. V, do art. 11,  só o processo licitatório frustrado. 

Ainda se apontaria outro obstáculo, na fixação das penas. As sanções para as condutas dos arts. 9º e 10, por se cuidar de atos que causam prejuízo a Administração, são mais severas, como a perda de função pública, suspensão dos direitos políticos, reprimendas que o inc. III, do art. 12, por exemplo, não arrola, fixando sanções compatíveis com os fatos espalhados nos seus incisos.  No caso, fosse possível, o réu terminaria sendo beneficiado.  

Não há como admitir a convocação do inc. V, do art. 11, quando não se ajusta o fato no inc. VIII, do art. 10. Os obstáculos são instransponíveis.