ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 11:12:51

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Os infiéis

Após o Golpe de 1964, a aspiração dos militares de exercício de poder sem resistência sofreu alguns revezes. Já em 1965, alguns governadores foram eleitos pela oposição, entre eles o de Minas Gerais, Israel Pinheiro, e o da Guanabara, Negrão de Lima. Em resposta, adveio o Ato Institucional n. 2, que estabeleceu requisitos severos de funcionamento partidário. Na prática, introduziu o bipartidarismo no Brasil. Se o governo castrense formasse a maioria parlamentar, coisa que a força garantiria, a oposição teria alguma voz, mas não teria vez. Os partidos políticos foram reduzidos a dois: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição. Sobreveio o AI n. 3, em 1966, que estabeleceu eleições indiretas para os governos estaduais já a partir daquele ano (naquele tempo não havia sincronização entre todas as eleições estaduais, o que só veio a ocorrer em 1970). Para garantir que a maioria alcançada com esse estratagema normativo não fosse desfeita, a Constituição de 1967 fixou a disciplina partidária como um dos elementos constitutivos das agremiações. Pouco depois, em 1969, a Emenda Constitucional n. 1 impôs a fidelidade partidária, sob pena de perda do mandato.

Aos poucos, apesar das tentativas de sufocar o dissenso, a abertura política foi se impondo. A cada eleição, mais oposicionistas eram eleitos. Em 1974, uma onda de senadores emedebistas saiu das urnas: 16 das 22 cadeiras disputadas. Para refrear riscos ao seu projeto de abertura “lenta e gradual”, o Presidente Ernesto Geisel, em 1977, fechou o Congresso por alguns dias e encaminhou o Pacote de Abril: um conjunto de atos normativos que, dentre outras medidas, aumentava bancadas nos estados onde a ARENA era mais forte. Para afiançar que não haveria perda da maioria no Congresso, estabeleceu que, em 1978, além dos governadores indiretamente escolhidos, um dos senadores seria ungido mediante escolha de um colégio eleitoral: eram os “biônicos”. A eleição de governadores voltaria a ser direta, mas em 1982. Exigia-se, contudo, que, para serem válidos, todos os votos fossem para o mesmo partido: de deputado estadual, deputado federal, senador e governador. Era o voto vinculado. O intento era evidente: por esse mecanismo, os estados arenistas, em maior número (embora em menor população), formariam a base parlamentar governista. Emendas constitucionais passaram a depender de maioria simples para aprovação (já que o governo não mais dispunha da qualificada). Em 1979, enfraquecendo o MDB, o pluripartidarismo foi reestabelecido. A oposição estaria fragmentada e a situação unida.

Em 1982, nove estados elegeram governadores oposicionistas, dentre eles os três maiores eleitorados: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Nasceu, pouco depois, o movimento das Diretas-Já, cujo bordão era bastante simples: “eu quero votar para presidente!”. Mas esse sonho teve de ser adiado. A Emenda Dante de Oliveira, que buscava que as eleições diretas fossem realizadas, foi derrotada. Aquela que seria a última eleição presidencial indireta, em 1985, teve duas candidaturas lançadas: Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Paulo Maluf, do Partido Democrático Social (PDS), sucessor da ARENA.

O PDS, graças à vinculação, era majoritário no colégio eleitoral, cujas regras eram desenhadas para não permitir qualquer espaço para surpresas. No entanto, o clima do país houvera mudado. Aquela era uma eleição disruptiva: não haveria, como não houve, nenhuma que tão claramente marcasse o fim de um período. Tancredo tinha as ruas. A Maluf, nem mesmo restava o seu partido. Houve defecções no PDS. José Sarney, que fora presidente da legenda, aceitara ser o candidato a vice-presidente de Tancredo. Como ele, vários líderes políticos se deslocaram para esse campo. Era a Frente Liberal, que se aglutinara ao PMDB para formar a Aliança Democrática.

Ao PDS restava, porém, uma cartada: a da fidelidade partidária. Se todos os seus delegados votassem no seu candidato, Maluf estaria eleito. O deputado federal dissidente Norton Macedo, então, formulou consulta ao Tribunal Superior Eleitoral indagando se as regras de fidelidade partidária se impunham no colégio eleitoral. O TSE respondeu que “em decorrência da liberdade de sufrágio, é válido o voto de membro do Colégio Eleitoral dado a candidato registrado por outro partido político” (Resolução 12.017, de 27.11.84, Relator o Ministro Néri da Silveira). A candidatura do PDS estava condenada. O partido ainda tentou editar resolução interna exigindo o voto em Maluf e Flávio Marcílio, seu vice. A pretensão recebeu impugnação de deputados e senadores pedessistas e o TSE, por unanimidade, negou arquivamento desse ato (Resolução 12.028, de 04.12.84, Relator o Ministro Torreão Braz).

Em 15 de janeiro de 1985, por 380 votos a 180, Tancredo Neves foi eleito, encerrando a série de generais presidenciais. Delegados do PDS votaram maciçamente nele. O Partido dos Trabalhadores (PT) orientou a bancada à abstenção. Apesar disso, três delegados seus votaram no candidato do PMDB: Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes. A ditadura estava acabada, com a ajuda dos infiéis.