ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 8:18:28

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Sinais trocados

Na manhã de 13 de fevereiro de 2016, John Poindexter estranhou que seu amigo Antonin Scalia não havia acordado cedo para caçar. Ao verificar esse atraso, descobriu que seu ilustre hóspede estava morto. Aos 79 anos, um dos titãs do direito constitucional estadunidense, juiz da Suprema Corte, expirou. Scalia era um ícone conservador. Para muitos, reacionário. Para outros, um gênio. Independentemente disso, era enxergado como um argumentador feroz, irônico e temível. Suas posições acentuavam o aspecto textual do direito e buscavam na origem deste o seu sentido.

O presidente Barack Obama apresentou, em março, o nome de Merrick Garland, juiz do Tribunal Federal do Distrito de Colúmbia, para sucedê-lo na Suprema Corte. Era uma oportunidade ímpar. Pela primeira vez, desde os anos 70, os democratas poderiam fazer uma maioria de cinco votos no colegiado de nove. Garland somaria seu nome às fileiras onde já estavam o juiz Stephen Breyer e as juízas Helena Kagan, Sonia Sotomayor e Ruth Bader Ginsburg.

Os republicanos, sendo maioria no Senado, onde o nome indicado tem de ser aprovado, elaboraram estratégia de bloqueio até que fosse escolhido o próximo presidente dos Estados Unidos, eis que as eleições estavam agendadas para novembro daquele mesmo ano. Os democratas revoltaram-se. Para eles, era uma usurpação de um poder do chefe do executivo. O nome poderia ser até rejeitado, mas jamais ignorado, posto sob condição de ratificação do eleitorado. Os republicanos, por outro lado, afirmavam que a maioria senatorial lhes dava a prerrogativa da agenda e isso permitia radicalizar a performance democrática da escolha, já que os próprios eleitores fariam, de certa forma, a chancela da nomeação.

Os democratas anteviam uma eleição dura, mas confiavam na vitória de Hillary Clinton sobre Donald Trump. As pesquisas indicavam que essa fé era justificada. No entanto, apesar de Hillary ter mais votos diretos do que Trump, os estados, surpreendentemente, formaram um colégio eleitoral no qual este conquistou mais delegados. O republicano foi eleito presidente e a designação de Garland caducou, com o final do período legislativo e presidencial. Em seu lugar, foi escolhido por Trump o juiz Neil Gorsuch, cuja linha de pensamento é semelhante à de Scalia. A maioria de cinco votos conservadores na Suprema Corte foi mantida.

Trump ainda teve oportunidade de nomear mais dois juízes para esse Tribunal. Para a vaga de Anthony Kennedy, que pediu aposentadoria, indicou Brett Kavanaugh, magistrado do Tribunal Federal do Distrito de Colúmbia, numa sucessão também realizada dentro do espectro ideológico republicano (embora Kennedy fosse um voto pendular, eventualmente compondo com os liberais). Mas, em 18 de setembro de 2020, faleceu a juíza Ruth Bader Ginsburg, a mais progressista da corte, que houvera sido nomeada por Bill Clinton, um democrata, em 1993.

Trump não se fez de rogado. Apontou Amy Coney Barret para a vaga. Barrett, que era juíza do Sétimo Tribunal Federal e havia sido assessora de Scalia, ampliaria a margem republicana, abrindo passagem para mudanças em precedentes relevantes. Os democratas reagiram. As eleições seriam em menos de dois meses! A maioria republicana no Senado inverteu os sinais da equação argumentativa: era uma prerrogativa presidencial. Venceu. Em 27 de outubro, ela tomou posse. A vantagem conservadora na Suprema Corte passava a ser de 6 x 3. Dias depois, em 3 de novembro, foram realizadas as eleições presidenciais. Joe Biden derrotou Trump.

Hoje, há pressão de alguns democratas para que o juiz Breyer, de 83 anos, se aposente, a fim de aproveitar a maioria senatorial democrata (há, em rigor, um empate, mas a vice-presidente, Kamala Harris, desempataria), que pode ser desfeita no ano que vem, nas eleições de meio de mandato.

Esses episódios recentes, de certa forma, iluminam o que tem acontecido no Brasil. O presidente  Bolsonaro indicou André Mendonça, ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça de seu governo, para a vaga aberta com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio. Uma das etapas até a nomeação é a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. O senador Davi Alcolumbre, no entanto, recusa-se a agendar a arguição.

Esse estado de coisas costuma ser enxergado, na política, sob as lentes de torcidas organizadas. Como o nome desagrada uns e satisfaz a outros, aos primeiros, a postura do senador Alcolumbre parece legítima e, aos demais, um desacerto. Há questões a ponderar, em uma análise jurídica pragmática e consequencialista: nas eleições do ano que vem, ao votar em um senador, o eleitor bem-informado sabe que tipo de poder está concedendo? E os senhores senadores saberão que poderes estão conferindo aos presidentes de comissões? Um presidente eleito em 2022 pode ficar à mercê de um único senador quanto às suas escolhas para os tribunais superiores? São perguntas que devem levar em consideração os sinais trocados que a democracia costuma apresentar nas eleições, periodicamente.