ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 12:21:21

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A pressa

Em O nome da rosa, Umberto Eco escreveu um romance policial que é, concomitantemente, uma crônica medieval, um convite à exploração da transição entre o racionalismo teológico e a racionalidade moderna, uma alegoria sobre o secreto e o público, entre o profano e o sagrado. Todas essas nuances estão inseridas em meio a outras alusões que o leitor mais atento pode estabelecer. Diálogos sofisticadíssimos, intertextuais, transitam de Conan Doyle a Jorge Luís Borges, passando por Guilherme de Ockham, Tomás de Aquino e, claro, Aristóteles, miolo da narrativa. Tudo isso a exigir atenção pois o autor é um especialista em semiótica e o que está escrito pode ser a alusão a alguma coisa não percebida pelo olhar focado no significado imediato do texto.

Como todo intérprete é também um pouco dono da obra, há anotações filosóficas que permitem inusitadas conexões atuais. Para ficar com uma delas, note-se que essa refinada leitura em camadas se faz dentro de uma trama ficcional alicerçada sobre uma base histórica real. Em 1323, Ludovico, o bávaro, foi eleito imperador do Sacro Império Romano Germânico. Ele apoiava a causa dos franciscanos. Estes queriam uma igreja pobre, sem bens, com religiosos igualmente mendicantes. O Papa João XXII, que governava desde Avignon, na França, pensava o oposto. Ludovico declarou o Papa herético. O Papa o excomungou. Formaram-se dois partidos: o dos guelfos (ao lado do pontífice) e dos guibelinos (com o imperador). Além do tema político, que envolvia saber quem, dos dois, seria o homem mais poderoso da Europa, uma questão teológica se colocava: Nosso Senhor tinha bens? A roupa de seu corpo lhe pertencia?

Pouco antes, facções franciscanas haviam agido violentamente, sob a liderança de Frei Dulcino, um religioso que desejava fazer a justiça divina entre os homens, pelas próprias mãos. Seus seguidores, que saqueavam e queimavam igrejas, foram implacavelmente combatidos pela Inquisição e dizimados. Receava-se, pois, que dessa disputa pudesse emergir uma nova fratura na Cristandade, mais violenta que a anterior, porque, desta vez, haveria um império a sustentá-la.

Isso é realmente história. Mas, no campo da ficção, dá-se a conexão que este artigo pretende indicar. No enredo de Eco, para evitar essa ruptura violenta, fantasia-se um encontro de notáveis, agendado em um mosteiro beneditino, como preparo para um outro, a ocorrer, em seguida, diante do próprio Pontífice. Chegam à abadia o franciscano, notável por sua capacidade de análise e de uso da lógica, Guilherme de Baskerville, acompanhado por seu aprendiz, o noviço Adso de Melk. Frei Guilherme era conhecido, em toda a parte, por suas habilidades intelectuais. Por isso, é convidado pelo abade a resolver o mistério envolvendo a recente morte de um monge, que pode criar problemas para a reunião pacificadora que se avizinha. O que vem depois disso é uma construção literária genial, que não convém adiantar, exceto por um episódio que não compromete o interesse na leitura e que serve de ilustração dos horrores do fanatismo. Não é um grande “spoiler”.

Em um determinado momento da narrativa, há um incidente envolvendo sexo e magia. Um dos monges, dele acusado, sob ameaça de morte na fogueira, feita por um inquisidor que compunha a delegação papal, confessa haver composto as hostes de Frei Dulcino, o franciscano violento. Disse que seu grupo havia queimado e saqueado porque “tínhamos eleito a pobreza como lei universal e tínhamos o direito de nos apoderarmos das riquezas ilegítimas dos outros, e queríamos atingir no coração a trama da avidez que se alastrava de paróquia em paróquia”. Acrescentou: “eu acreditava que era a espada do Senhor e precisávamos inclusive matar os inocentes para poder matar-vos todos o mais rápido possível. Nós queríamos um mundo melhor, de paz e de cortesia, e a felicidade para todos”.

O noviço Adso, chocado com essa exposição, pergunta a Guilherme de Baskerville, se isso é a “pureza”. Guilherme confirma, aduzindo que há outras formas dela, mas todas lhe dão medo. E, quando indagado sobre o que lhe causa mais medo na pureza, ele responde: “a pressa”.

Na vida religiosa e na ação política a pretensão de pureza apressada conduz ao fanatismo. Desse jeito também é no direito. Nele, poucas coisas são mais estarrecedoras do que se ver, como se tem visto, que um juiz se aliou aos acusadores, trocando sugestões de procedimentos, adiantando os passos processuais, comprometendo a imparcialidade do seu cargo.

Repugna à lei e à justiça a corrupção. Afronta-os, igualmente, a parcialidade que subverte o devido processo legal e faz do açodamento em condenar o túmulo da defesa, essa prerrogativa processual essencial. Notória inimiga da perfeição, a correria em adotar conclusões pré-concebidas, alinhadas na clandestinidade, faz pensar que a Inquisição e o puritanismo ainda não estão superados. Alguns operadores do direito no Brasil tanto poderiam ser confundidos com seguidores de Dulcino, quanto de Torquemada.