ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 17:23:48

logoajn1

Na interpretação, a visão geral

Vladimir Souza Carvalho (*)

Na interpretação de uma norma, antes de tudo, se  deve ter uma visão geral do cenário onde ela foi colocada. Pincelá-la, pura e simplesmente, despojado de todo o conteúdo do diploma, simboliza ato de precipitação que não se casa com a paciência do julgador. Dou um exemplo bem simples. Matar alguém é homicídio simples. Notório. Contudo, é de se observar que, ocorrendo alguma das três causas declinadas no art. 23, do Código Penal, o crime deixa de existir.

A advertência parte da adoção que o Código de Processo Civil, no art. 51 e parágrafo único, fez de dois parágrafos da Constituição, §§ 1º e 2º, do art. 109. Foi positiva a inserção da matéria atinente a competência da ação para as ações da União e movidas contra a União, corrigindo lacuna na lei processual civil anterior. O ponto nevrálgico repousa em ter as Cortes Superiores trasladado para o mandado de segurança a mesma e exata norma, passando a predominar que, nestes, impetrado contra ato de autoridade federal pertencente ao quadro da União, a competência se rege pelas opções declinadas nas quatro hipóteses ali apontadas, ou seja, foro do domicilio do autor,  da ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, da situação da cousa e, enfim, no Distrito Federal.

Os defeitos pululam aos montes, todos de igual importância, a prejudicar a sua catalogação entre os principais e os secundários.

De início, faltou a visão necessária para verificar que o art. 51 e parágrafo único são cópias dos §§ 1º e 2º, do art. 109, da Constituição, e, dentro do citado dispositivo constitucional e seus doze incisos, voltados unicamente a apontar as causas da competência da Justiça Federal, só se dirigem para um inciso, o I, e parte final do inc. X.  O mandado de segurança figura no inc. VIII, regido por lei própria, no momento, a Lei 12.016/ 2009, não guarda, no campo processual, semelhança com a ação ordinária, portando normas que só aplicam ao seu tramitar, se chocando, em diversos pontos, com as gerais estampadas no Código de Processo Civil no que tange à regência da ação ordinária.

Ainda, as situações enumeradas no parágrafo único do art. 51, da lei processual civil, da mesma forma que a norma-mãe, ou seja, o § 2º, do art. 109, da Lei Maior, nenhuma delas tem qualquer aplicação ao mandado de segurança, que, afinal, ataca o ato certo da autoridade administrativa competente para tanto, com domicílio funcional na sua sede. É fora de propósito indicar qualquer das situações dos dois parágrafos com o ato atacado no mandado de segurança, por não ter como se acomodar em nenhuma deles.

Depois, ficou uma regra que só alberga os mandados de segurança contra autoridade administrativa da União, não sendo convocada quando se cuidar de autoridade privada, v. g., reitor de universidade de ensino superior, que, no remédio heróico, na matéria ligada ao ensino propriamente dito, por força de delegação, funciona como autoridade federal. Fica este de fora do entendimento das Cortes Superiores.

Arrolo outro motivo de sua impertinência no fato de que as autoridades estaduais e municipais também estão sujeitas ao mandado de segurança, e, como não são da União, não se sujeitam ao art. 51 e seu parágrafo do Código de Processo Civil, circunstância a evidenciar que a interpretação dada ao dito dispositivo é perfeitamente manca, só aplicando-se quando a autoridade administrativa for do quadro da União, detalhe que quebra a uniformidade da matéria, porque só funciona quando  a autoridade coatora for da União, deixando as demais autoridades  – estaduais e municipais – a mercê do código de organização judiciária estadual.

E tudo porque se pincelou do Código de Processo Civil um dispositivo copiado da Constituição, mas destinado exclusivamente a ação ordinária, na Justiça Federal, para gerir os destinos do remédio heróico. Tivesse o julgador, que assim decidiu, percebido que se cuidava de cópia de disposição encaixada na Constituição, teria ido para a norma-mãe e verificado que as disposições da lei processual civil são dirigidas apenas para a ação ordinária, e, nunca, absolutamente nunca, para os mandados de segurança. Afinal, o paletó de um não cabe no outro.

De minha parte, tenho me rendido ao posicionamento das Cortes Superiores, por força da unidade jurisdicional, deixando, contudo, bem assentado, o entendimento em sentido contrário, como o faço na terceira edição de Teoria da Competência da Justiça Federal, pela Juruá, no prelo, abordando a matéria em espaço maior, tentando colocar os pontos nos ii, separando lebre de rato graúdo.

O quadro evidencia que a leitura de um só dispositivo, sem a visão do geral, é caminho  para equivocadas  conclusões, tão rotineiras na vida forense, sobretudo quando se falta intimidade para enfocar determinadas matérias. Essa é uma delas.

(*) Magistrado. Membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.