ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 12:28:40

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O careca e a touca

Alguém já esteve sentado à mesa para uma refeição, em casa ou em algum restaurante, ou, até mesmo, em casa de um amigo, e, de repente, deparou-se com um cabelo na comida? E, mais ainda, com um tufo de cabelos, preto, loiro, castanho ou grisalho? Tem quem acabe vomitando diante de uma situação dessa. Não se sabe porquê, um fio ou um tufo de cabelos causa tanta náusea. Um fiozinho só, que seja! Lá está ele escondido no espaguete, no feijão, no caldo da galinha ao molho pardo, atolado na tigela de mungunzá, e por aí vai. Meu Deus!

Na cozinha de um restaurante de determinada entidade pública, que servia refeições, onde se deveria, por Portaria da autoridade superior, fazer-se uso de toucas, um auxiliar de cozinha foi denunciado por recusar-se a usar a bendita touca. Primeiro, o servidor foi chamado às falas pelo superior imediato, o chefe de cozinha. Nada. Depois, a nutricionista, que comandava a seção. Nada. O diretor do restaurante. Nova recusa. Aí, sim, a denúncia enviada à instância adequada. O diretor do restaurante era novato, exigente, casca grossa. Na conversa com o subordinado, quase o agarrou pela abertura. Vociferou. Cuspiu fogo, arrotou brasa. O rapaz, nem chite. “Não uso”, ele disse e repetiu.

Memorando para lá, memorando para cá, eis que foi aberta uma sindicância investigativa para apurar o caso. Comissão constituída. Os denuncismos choveram. Muitas testemunhas a ser ouvidas. Choveram cartinhas e bilhetes, algumas desaforadas e outros chistosos, dando conta de um fio de cabelo encontrado no cuscuz, outro fio encontrado no arroz, um tufo nadando na sopa de legumes. Muita nojeira. Um bilhete com bichinhos estampados no papel, dizia: “Um fio de cabelo / Não é desmantelo / O que não mata, engorda / Minha gente, acorda”! Alguém escreveu que ficou com um fio de cabelo grudado nos dentes, tendo que ir ao dentista para o retirar. Exageros não faltaram, como, em regra, sói ocorrer em situações desse tipo.

Numa carta azougada, alguém, com erudição de banheiro, protestava contra as guerras, contra os líderes mundiais, contra todo tipo de discriminação, contra o preço da banana nanica, contra o raio que o parta. Tem gente e ocasião para tudo.

Enquanto a situação se desenrolava, o auxiliar de cozinha foi afastado de suas funções. Enfim, onde já se um servidor rebelde assim, que se recusava a usar uma touca, no ambiente de trabalho, ou seja, na cozinha? O afastado recorreu ao Sindicato da categoria. O advogado riu do caso. A situação em si era mesmo para boas gargalhadas. A sindicância seria acompanhada pelo causídico. “Isso é besteira. É falta do que fazer. Não vai dar em nada. Mas, eu vou lhe dar uma orientação, para o dia da audiência, quando você for prestar declarações. Fique tranquilo”.

De fato, a situação criada era tão absurda, que não causou abalo no auxiliar de cozinha denunciado. Tanto que à véspera de comparecer perante a comissão, para prestar declarações, ele refestelou-se com um prato de camarões recheados, com a seguinte descrição: camarões eviscerados, recheados com catupiry e empanados na farinha panko e acompanhados de arroz ao alho e batatas chips. Uma delícia e sem cabelos. Depois, ele foi relaxar no cinema, assistindo a uma boa comédia. Dormiu o sono dos justos.

Manhã de setembro. Início da primavera, restos de chuviscos. Mas, o verão antecipado logo daria a cara. O auxiliar de cozinha denunciado acordou bem-disposto. Seguiu a orientação do advogado. Antes da hora marcada para a sua oitiva, às 9 horas, lá estava ele na antessala do local onde a comissão se reunia. O advogado, jovem, logo chegou também. Os membros da comissão ali já estavam.

O presidente da comissão, com cara emburrada, perguntou, dirigindo-se ao denunciado: “É o senhor quem se recusa usar a touca”? Ele assentiu com um movimento de cabeça e com um sorriso irônico. Entraram na sala.

Tudo preparado. O presidente leu a denúncia, que, claro, já era do conhecimento do denunciado e de seu advogado. Indagou: “É verdade que o senhor não usa a touca, na cozinha, apesar da determinação do chefe, mediante Portaria”?

O denunciado retirou da cabeça um chapéu, que foi a orientação do advogado. Mostrou a careca reluzente. Não tinha um fio de cabelo. “Eu não preciso usar touca. Não tenho cabelos nem piolhos”. Um membro da comissão abriu uma sonora gargalhada. Arquivou-se o processo.