ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 15:50:17

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Sem anistia

A história mostra que, após superar nefastos períodos ditatoriais em que agentes estatais praticaram diversos graves crimes contra a população e especialmente contra opositores políticos, é indispensável passar em revista de forma aprofundada todo o contexto, com as necessárias investigações, inclusive e principalmente criminais, ensejadoras das responsabilizações jurídicas e respectivos julgamentos, observado o devido processo legal.
É o que se chama de “justiça de transição”, no ambiente do cultivo à memória e à verdade, para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça.
No Brasil, atravessamos alguns desses momentos ditatoriais, a exemplo do que sucedeu durante o regime do Estado Novo e, mais recentemente, durante a ditadura militar de 1964/1985.
Para além do fechamento político e ruptura democrática, com repressão às liberdades públicas e políticas e aos direitos humanos, nessas ocasiões foram perpetrados, por agentes estatais, crimes como torturas físicas e psicológicas, homicídios, ocultamentos de cadáver, desaparecimento forçado, abusos sexuais contra opositores políticos, dentre outras gravíssimas violências.
Ocorre que, no bojo da transição “lenta, gradual e segura” para a democracia programada pelos militares, foi negociada uma forma de perdão, como se se tratasse de condição para que fosse aceita a transferência do poder político e o restabelecimento do Estado de Direito.
Assim é que foi aprovada a Lei nº 6.683/79, que concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos ou conexo com estes (art. 1º), considerando-se conexos, para esse efeito, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” (art. 1º, §1º).
Lamentavelmente, consolidou-se a interpretação no sentido de que crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar, foram conexos aos crimes políticos praticados no período e, portanto, estariam abrangidos pela anistia concedida. Desse modo, os graves crimes praticados pelos agentes públicos de variados escalões no período da ditadura militar ficaram sem possibilidade de responsabilização criminal.
Com a promulgação da Constituição-Cidadã de 1988, um novo arcabouço jurídico-constitucional entrou em vigor, propiciando que, mais adiante, viesse a ser revisado o debate público sobre o tema.
Nesse quadro, presenciou-se em 2008 intensa e salutar controvérsia pública sobre o âmbito de aplicação da lei da anistia, envolvendo, notadamente, o Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa, bem como juristas e acadêmicos.
Essa controvérsia constitucional relevante sobre a interpretação de lei federal anterior à Constituição e sobre a sua compatibilidade com preceitos fundamentais oportunizou a propositura, pelo Conselho Federal da OAB, de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, na qual pleiteou “interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)” (ADPF nº 153).
Todavia, essa ADPF foi julgada improcedente pelo STF em 29/04/2010, por maioria (vencidos apenas Ricardo Lewandowski e Carlos Britto).
Ainda que estejam pendentes de apreciação final embargos de declaração devidamente interpostos e mesmo que o tema também esteja em apreciação em Cortes Internacionais, o fato é que, em termos concretos de aplicação prática, prevalece essa decisão do STF, que possui efeito vinculante e que, no ponto, impede a persecução criminal dos praticantes dos já apontados graves crimes durante a ditadura militar.
Todo esse contexto é apresentado no momento em que a sociedade brasileira clama para que, dessa vez, considerados graves crimes praticados durante os últimos quatro anos, em especial crimes contra a vida e a saúde do povo brasileiro com a gestão governamental criminosa da pandemia e intencionalmente aplicadora da estratégia da disseminação do coronavírus com vistas a alcançar a propalada “imunidade de rebanho”, mesmo que à custa de mortes evitáveis, bem ainda a morosidade na aquisição das vacinas e mesmo o desincentivo à vacinação, como também os crimes contra a democracia, evidenciados por um conjunto de atos voltados ao planejamento de ruptura institucional, que atingiram o seu apogeu com a tentativa de golpe de estado e invasão dos prédios dos três Poderes, com vandalismo e depredação do patrimônio público no 8 de janeiro de 2023, venha a ocorrer efetivamente a devida investigação de todos os atos e condutas, para apontamento dos responsáveis em todas as esferas, propiciadoras dos julgamentos, observado o devido processo legal, com as adequadas e justas punições, se for o caso em cada caso, SEM ANISTIA, para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça!

É advogado, professor universitário, mestre em Direito Constitucional e doutor em Direito Político e Econômico