ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 16:06:49

logoajn1

Vinícius Júnior e as lutas antirracistas no futebol e na sociedade

O atleta Vinícius Júnior foi, mais uma vez, vítima de deploráveis atos racistas em estádio de futebol, agora em Valência, na Espanha, ponto culminante de sucessivos episódios semelhantes ao longo de sua destacada atuação esportiva naquele país.

No futebol, esse tipo de comportamento tem sido frequente, na Europa e na América do Sul, já tendo ocorrido em diversas partidas da Taça Libertadores da América.

Sempre que práticas racistas nefastas como essas ocorrem no futebol mundial, são cobradas as devidas punições aos agressores, mas também são cobradas as punições esportivas correlatas (como interdição de estádio e perda de mando de campo).

Nem umas (punições pessoais, inclusive no âmbito criminal, dos agressores) nem outras (punições esportivas) são suficientes e eficazes (ainda que necessárias) para combater essa chaga que é a discriminação racial contra os negros. E o racismo no futebol nada mais é, infelizmente, do que o racismo que existe disseminado no mundo inteiro, nos mais diversos setores da vida.

Em momentos como esses, a reflexão sobre como combater e erradicar o racismo precisa ir além da mera punição, cujo maior símbolo é a prisão dos agressores.

Reverter esse quadro de discriminação racial contra os negros deve ser objetivo fundamental da humanidade. Para isso, é preciso reverter o quadro de inconsciente coletivo racialmente discriminatório, próprio do racismo estrutural que nos assola.

É impositiva a adoção de uma postura proativa, que interfira diretamente nas relações sociais de modo a proporcionar efetiva inclusão dos grupos historicamente marginalizados e discriminados. É nesse contexto que devem ser compreendidas as chamadas políticas de ação afirmativa, que são políticas públicas que o Estado tem o dever de adotar, como instrumentos da efetivação de tais objetivos. Políticas públicas que abrangem um conjunto amplo de medidas voltadas à progressiva igualação dos negros aos demais na realidade social. Dentre essas medidas, podem ser citadas desde práticas administrativas que incluam programas de educação e conscientização sobre a presença do negro na história até as chamadas cotas ou reservas de vagas para negros em universidades ou no mercado de trabalho.

No Brasil, a Constituição assegura, como direito social dos trabalhadores, a “proibição de critério de admissão por motivo de cor” (Art. 7º, XXX) e, como princípio do ensino, a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Art. 206, I). A realidade, todavia, apresenta quadro inverso. Ou seja: a) a utilização, pelo mercado de trabalho, de mecanismos informais e sub-reptícios de inadmissão de negros aos empregos em geral e especificamente aos empregos de maior destaque e prestígio; b) a desigualdade de condições na disputa por vagas em universidades, desigualdade essa que, a toda evidência, desprestigia os negros.

As cotas para negros em universidades e no mercado de trabalho constituem, desde que compreendidas e inseridas no contexto maior das políticas de ação afirmativa, um dever constitucional. Com elas, o Estado abandona a letargia e procura interferir diretamente na realidade discriminatória e segregacionista. Por óbvio, não são excludentes da adoção de outras medidas estruturantes. E também possuem uma destinação temporária: ao passo em que forem progressivamente alcançando o objetivo, devem progressivamente desaparecer [essa discussão, em termos oficiais, já está superada, uma vez que o STF já declarou, com eficácia vinculante, a constitucionalidade e a validade dessas políticas de ações afirmativas tanto por critérios raciais quanto sociais, e já existe todo um instrumental legislativo operativo dessas políticas].

Do contrário, continuaremos a presenciar cenas lamentáveis e degradantes de discriminação racial (explícita ou camuflada), como são exemplificativas as que ocorrem no futebol e que ocorreram novamente nos eventos mencionados no início do texto. Ou ainda com agressões físicas seletivas, tendo como marco preferencial de seleção exatamente a cor negra da pele.

O “exemplo” que se dá com a punição dos crimes de racismo ou de injúria racial (ou, no âmbito esportivo, com as sanções esportivas) exercem uma função pedagógica, é verdade, mas de pequeno potencial transformador do inconsciente coletivo discriminatório.

A reversão desse quadro só será realmente possível quando a sociedade se acostumar com a ideia de que negros são realmente iguais aos brancos, e esse costume só virá quando brancos vejam negros ocupando os mesmos espaços de trabalho, ocupando os mesmos espaços de lazer, ocupando os mesmos espaços acadêmicos, enfim, ocupando os mesmos espaços sociais e convivendo normalmente, fraternalmente, como iguais (embora diferentes: igualdade na diversidade).

Isso só será possível com a adoção de políticas públicas inclusivas dos negros nos espaços sociais, de modo a retirar do inconsciente coletivo a noção de hierarquização da sociedade, onde os brancos ocupam os melhores espaços.

No ano de 2020, ocorreu um despertar mundial [a partir do assassinato brutal, por  um policial, nos EUA, de George Floyd (por sinal, essa é uma realidade cotidiana no Brasil – a exemplo do caso Genivaldo Santos, morto após violenta abordagem policial em Umbaúba/SE – e que muitas vezes não desperta, infelizmente, a mesma comoção e movimentação ativista), e de toda a mobilização decorrente] da necessidade de não apenas reconhecer e identificar as lamentáveis posturas e práticas racistas em todo o mundo mas também de adotar permanente postura antirracista; a resistência ativa e altiva de Vinícius Júnior, que despertou solidariedade internacional e desnudou a omissão e a passividade racista dos dirigentes do futebol espanhol, corrobora toda essa luta.

É a nossa obrigação cívica, considerado o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos ou discriminações de raça ou cor.