ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 18:23:31

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A vergonha do trabalho escravo no brasil ou “a carne mais barata do mercado é a carne negra”

O grande cientista Charles Darwin, autor do clássico A Origem das Espécies, no ano de 1832 passou 04 meses no Brasil e mesmo diante de uma enorme biodiversidade, com as riquezas de nossas florestas, da fauna e flora, o a época jovem naturalista e pai da teoria da evolução das espécies, ficou mesmo impressionado foi com a crueldade e tratamento desumano a que eram submetidos os escravos, a ponto de escrever em seu diário que: “até hoje, se eu ouço um grito ao longe, lembro-me, com dolorosa e clara memória, de quando passei numa casa em Pernambuco e ouvi os urros mais terríveis. Logo entendi que era algum pobre escravo que estava sendo torturado, Eu me senti impotente como uma criança diante daquilo, incapaz de fazer a mínima objeção”.

Os horrores da escravidão no Brasil estão documentados em anúncios de venda de seres humanos, recompensas por capturas de negros fugitivos e das escrituras que registram o valor de vidas que foram traficadas e aprisionadas, além das diversas punições extremamente cruéis no pelourinho, contribuindo para a naturalização da tortura (advém desse período métodos de sevícias posteriormente “aperfeiçoados”, como o pau de arara, por exemplo). Essa página deplorável de nossa história está fidedignamente retratada nas gravuras de Jean Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas. A hediodez dos espancamentos impingidos aos escravos impressionaram Darwin a ponto dele afirmar que “nunca hei de voltar a um país com escravidão”.

O Brasil foi a última nação do continente americano a abolir o trabalho escravo, fazendo-o após intensa campanha abolicionista do final do século XIX. Após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, não havendo qualquer preocupação do estado e dos detentores dos meios de produção com a integração social, com a dignidade humana em tratar os trabalhadores anteriormente escravizados como assalariados, passando os alforriados a viverem de trabalhos subumanos, aviltantes e degradantes.

Esta é uma história de humilhação, descaso, preconceitos, injustiças e dor. O sociólogo Florestan Fernandes em estudo clássico sobre o tema (A integração do negro na sociedade de classes) leciona que a abolição não libertou o trabalhador negro, possuindo um caráter de espoliação e exploração extremamente cruel, sendo vítimas de discriminação que lamentavelmente ainda perdura.

Para vergonha da imensa maioria dos brasileiros que não pactuam com o trabalho escravo, essa chaga está presente nos dias atuais, clamando por uma punição proporcional e justa contra todas as empresas que buscam suprimir a dignidade do trabalhador.

Segundo dados coletados pelo Ministério Público do Trabalho – MPT, nos últimos dez anos foram resgatados mais de 19 mil trabalhadores, muitos deles adolescentes, em situação análoga à escravidão, sendo espoliados pelos mais diversos segmentos, a exemplo da indústria têxtil, madeireiras, pecuária e plantio de várias culturas como arroz, cana, soja e uva, cafeicultores, carvoarias, dentre outras atividades que insistem nesta prática obscurantista, mesmo configurando o crime tipificado no art. 149 do Código Penal (redução à condição análoga de escravo) com pena de 2 a 8 anos de reclusão.

Importante registrar que o trabalho escravo resta consumado não somente com a supressão da liberdade, mas também com a submissão de trabalhos forçados ou a jornada laboral exaustiva, sujeitando os trabalhadores a condições degradantes de trabalho, privando-os de água potável e alimentação, por exemplo, mantendo-os em alojamentos insalubres ou ainda, cobrando dívidas extorsivas, normalmente despesas com locomoção, aquisição de ferramentas, alimentação e produtos de higiene pessoal.

A prática de referida conduta implica em ofensa a Convenção dos Direitos Humanos da ONU, agressão a Constituição Federal de 1988 que prevê, inclusive, a expropriação da propriedade rural utilizada para o trabalho escravo (art. 243 da CF inserido pela Emenda Constitucional 81/2014), Convenção n. 29 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, Código Penal e a diversas normas trabalhistas, possibilitando, além da fixação de multas e obrigação de reparar os trabalhadores explorados, que as empresas condenadas por esta espúria prática venham a integrar um cadastro nacional denominado “Lista Suja”.

Mesmo todo esse arcabouço jurídico e normativo, ainda parece ser insuficiente para coibir essa prática vexatória, não exercendo o poder dissuasório junto aqueles que de forma anticivilizatória e desumana valem-se do trabalho escravo, sendo que nos últimos dias, principalmente após a alternância de poder na República e o estímulo à atuação dos fiscais do trabalho, foram divulgados sucessivos escândalos envolvendo grandes empresas acusadas de explorar trabalho escravo, merecendo especial destaque o flagrante das vinícolas situadas no Rio Grande do Sul. Neste caso específico, chama a atenção os valores muito baixo das multas e indenizações fixadas em desfavor de empresas que registraram lucros milionários nos últimos anos.

As três vinícolas identificadas e autuadas pelo Ministério do Trabalho, durante o curso da investigação firmaram um acordo com o MPT no valor de R$ 7 milhões de reais para cobrir danos materiais, morais e promover o ressarcimento de verbas trabalhistas individuais de cada trabalhador resgatado, sendo que referido montante corresponde a 0,46% do faturamento anual destas empresas. Desse quantum foram destinados R$ 2 milhões para os trabalhadores, correspondendo a pouco mais de R$ 9 mil reais para cada um.

Cuida-se de valor absolutamente insignificante a ser pago a cada um dos trabalhadores escravizados, recrutados na periferia de Salvador-BA e que acreditaram em uma proposta de trabalho no sul do país. Uma ação de indenização por danos morais no Juizado Especial Cível em razão de um atraso de vôo ou extravio de bagagem rende uma condenação nesse patamar financeiro, demonstrando a lamentável atualidade da música de Elza Soares ao vaticinar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.

A indenização de um trabalhador resgatado em situação análoga à escravidão não pode ser fixada no mesmo valor de uma indenização de quem tem seu nome negativado no SPC, sofre um aborrecimento ou prejuízo pelo atraso de um vôo ou em razão do extravio de uma bagagem. A dignidade do ser humano é novamente aviltada com condenações tão baixas e desproporcionais.

Existe um longo caminho a ser trilhado no Brasil até a implementação e o respeito das garantias fundamentais decorrentes das relações de trabalho.  Dizer não ao trabalho escravo, inclusive identificando, processando e punindo criminalmente os empresários lenientes com esse absurdo, estabelecendo adequada indenização às vítimas, criando mecanismos de educação para evitar que essa prática se repita, em pleno século XXI, ainda é uma pauta urgente e necessária, evidenciando que todo ser humano tenha dignidade e não preço.