ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 20:17:10

logoajn1

Bolsonaro: os diamantes são eternos

O grande escritor e jornalista britânico Ian Fleming ficou imortalizado pela publicação de vários romances de espionagem protagonizados por seu célebre personagem, o agente secreto James Bond, conhecido pelo codinome 007.

Dentre suas obras, todas adaptadas para o cinema e convertidas em sucessos de público e crítica, destaca-se a preferida de Fleming que rendeu o excelente “thriller” 007 Os Diamantes são Eternos.

Em síntese, revela-se um esquema de contrabando de diamantes da África, sendo as joias lapidadas na Europa e depois distribuídas para a América, com o envolvimento direto de governantes desonestos. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema: “Tudo passa, só os diamantes são eternos“.

No ano de 2023 em terra brasilis a vida imita a arte e nos deparamos com o escândalo das joias “doadas” ao ex-presidente Bolsonaro e sua esposa, envolvendo um enredo de contrabando da Arábia Saudita para o Brasil, tentativas frustradas de desvio e apropriação do patrimônio público e envolvimento direto de agentes públicos em situação de vergonha institucional.

Até o momento foram revelados três estojos de elevadíssimo valor, sendo um registrado pelo ex-presidente e mantido em seu poder após encerrado o mandato, afirmando tratar-se de um presente personalíssimo, um outro apreendido na alfândega dentro de uma mochila e escondido em uma estátua de um cavalo, transportada por um oficial militar e um terceiro descoberto pela imprensa e divulgada sua existência mesmo depois do escândalo anterior e da ciência inequívoca da necessidade de devolução para ser incorporado ao patrimônio da União.

O episódio que configura descaminho (importar mercadorias lícitas sem o recolhimento tributário – art. 334, Código Penal) e apreensão pela Receita Federal ainda rendeu várias tentativas de liberação das joias avaliadas em 16,5 milhões de reais, inclusive valendo-se da famosa “carteirada”, demonstrando a postura do fiscal da receita federal que os servidores de carreira, em sua imensa maioria, mantém uma conduta funcional absolutamente proba e que a estabilidade no serviço público serve para evitar que se atemorize, intimide ou ameace o servidor público que cumpre a lei de forma impessoal.

Para a surpresa de muitos, mesmo após ser notificado pelo Tribunal de Contas da União com o propósito de promover a devolução da primeira caixa de joias (avaliada em 500 mil reais), além de armas que foram “presenteadas” ao ex-presidente, não servindo como álibi o argumento de que se tratavam de bens personalíssimos integrantes do acervo pessoal, eis que aparece um terceiro pacote de joias “ofertadas” pelo ditador árabe Mohammed bin Salman que é alvo de diversas denúncias por violações aos direitos humanos. Desta feita, referido regalo estava escondido na fazenda de Nélson Piquet que desceu do pedestal de campeão mundial de Fórmula 1 e ídolo do esporte brasileiro para se colocar na condição de partícipe da prática de peculato, sendo responsável por um “mocó” para ocultar bens desviados do patrimônio da União.

Analisando todo esse roteiro, bem mais pobre que os enredos de Ian Fleming, desprovidos de qualquer glamour, tem-se a descoberta de agentes públicos que assessoravam o ex-presidente, trabalhando diretamente para a consumação do crime de peculato capitulado no art. 312 do Código Penal.

Considera-se peculato qualquer conduta objetivando “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. Aparentemente o escândalo das joias preenche todos os requisitos do tipo penal, senão vejamos:

Buscou-se com a omissão na devolução das joias “presenteadas” pelo príncipe saudita a apropriação de bens móveis, de natureza pública, cuja posse se tem em razão do cargo. As provas até então reveladas apontam para a existência de indícios de autoria e materialidade que legitimam o enquadramento da conduta imputada aos investigados na moldura do crime de peculato, etiquetado no art. 312 do Código Penal e que possuí uma pena de reclusão de 2 a 12 anos e multa.

Observe-se que no caso dos dois estojos que somados totalizam 1 milhão de reais, consuma-se a conduta delituosa ao se promover seu desvio com animus de apropriação, não havendo intenção de devolver ou informar as autoridades acerca de sua existência, somente tendo ocorrido a restituição após notificação formal do TCU.

Ademais, o argumento apresentado à guisa de defesa, de que se tratam de presentes individuais e bens personalíssimos, padece de consistência jurídica, considerando que a Lei nº. 8.394/1991 e o Decreto nº. 4.344/2002, que regulamentam a matéria, estabelecem que os itens recebidos em cerimônias de trocas de presentes, audiências com autoridades estrangeiras, visitas ou viagens oficiais são declarados como de interesse público e devem integrar o patrimônio cultural brasileiro, ressalvados itens de consumo pessoal ou de baixo valor financeiro, conforme precedente firmado pelo TCU desde 2016 (Processo TC 011.591/2016-1).

À toda evidência, joias de elevadíssimo valor e de marcas famosíssimas, não configuram itens de uso ou consumo pessoal e de avaliação módica. Portanto, ao não devolver espontaneamente os bens, ao não preencher adequadamente os documentos oficiais e tramitar o colar de mais de 16 milhões pela via institucional, transportando-o escondido em uma sacola privada de um assessor de Ministro, por sinal um Almirante que corre o risco de responder por peculato e ser condenado criminalmente, enlameando sua honrosa carreira militar, tem-se elementos mais que suficientes para a abertura de uma ação penal, apurando-se autoria, materialidade, dolo e promovendo-se a adequada individualização das conduta de todos os envolvidos nessa história farsesca.

Evidentemente que todos os personagens citados e investigados deverão ter asseguradas as garantias processuais inerentes ao processo penal e, ao final, acaso comprovada a culpa, que sejam condenados nas iras dos arts. 312 e 344 do Código Penal, restando desse episódio várias lições relevantes, notadamente a de que o governante não é senhor plenipotenciário da nação e em uma democracia, diferentemente de uma ditadura como na Arábia Saudita, os bens públicos não pertencem ao gestor, sendo propriedade do Estado (res publica não se confunde com cosa nostra). Também nos foi revelado que existem servidores de carreira que honram o múnus público que ostentam e não sucumbem aos velhos costumes brasileiros, a exemplo do famoso “você sabe com quem está falando?” e, por fim, acredito que o ex-presidente e seus seguidores também vão descobrir que “tudo na vida passa, mas só os diamantes são eternos”.