Dia desses eu voltava de Carmópolis para Aracaju. Era algo por volta do meio-dia. Sol escaldante, com temperatura acima dos 35° celsius. Para completar o cenário dantesco (com calor que o próprio Dante conheceu na sua Divina Comédia), o ar condicionado do meu carro estava sem funcionar. Não adiantava abriar as janelas do meu possante com aro 19. O vento trazia labaredas em vez de suavização da tormenta calorosa.
Como não há nada de ruim que não possa piorar, fiquei por mais de cinquenta minutos parado na fila de veículos, ao longo da BR 101, no trecho perto do povoado de Pedra Branca, município de Laranjeiras, em razão de um pare/siga DESGRAÇADO oriundo por causa de décadas sem que o serviço nesta via fosse concluído.
Um tempo de mil anos, era a sensação naquele forno a céu aberto. Estava tão quente que a garrafinha de água mineral quase derretia, mesmo dentro do carro. Foi uma das piores coisas que já senti na vida em relação à temperatura.
Em meio a essa odisseia tempestuosa de calor, fome, sede e raiva por causa da obra inacabada, ainda pensei em xingar até a décima geração dos governantes que deixaram de fazer o que deveria ser feito. Parei, pensei, refleti:
– Pra quê lançar maldição? Nem vai resolver o problema nem vai amenizar o calor. Que esses canalhas sofram com as próprias consciências.
Nesse surto de maturidade e competência emocional, desviei minha atenção pra desejar algo gelado. Quem dera um sorvete, uma água fria de riacho, um picolé. De repente, ao longe, avisto uma figura quixotesca balançando um sininho, empurrando um carrinho vermelho com tampa amarela, gritando sergipanamente:
– Ói o picolé!
Meu coração disparou de alegria, um refrigério naquele sol de deserto rasgou meu pensamento.
– Chegue aê, picolé! Tem de coco?
– Tem.
– Quero dois. Aceita pix, cartão ou troca cem?
– Rapaz, nenhum dos três. Vendi pouco e num tenho troco. Como num sei ler, não vendo com cartão nem o pix.
Meu coração gelou. Iria ficar sem meu desejo de refrigério ser atendido.
– Ah, tudo bem, pegue de volta o picolé, disse pro vendedor, cujo nome era Tonho. Minha alma entrou num processo de desolação e desconcerto. Tristeza total. Olhei pra fila e oltou a ideia de xingar os governantes.
– Pode ficar com o picolé, amigo. Se preocupe não. Tá muito quente e tô vendo que você tá precisando.
As palavras de Tonho entraram na minha alma como uma bomba atômica de generosidade e compaixão. Por alguns segundos, olhei pra ele e pensei que nem tudo está perdido neste mundo. Agradecia enorme gentileza e ofereci algo em troca:
– Tonho, você me disse que não sabe ler. Eu vou começar um projeto de alfabetização de adultos em março, chamado Letra do Bem. Você é meu convidado!
– Ói, eu quero. Vou aprender a ler, expressou Tonho na simplicidade de uma alegria que não ficou contida.
Passei meu contato e o endereço do local onde vai funcionar o Letra do Bem. Naquele memento, já não sentia mais calor nem lembrava dos maus governantes. Fui tomado por uma força indescritível chamada gratidão.
– Bora, Tonho, aprender a ler pra muita coisa mudar na sua vida.
– Bora, eu quero!