ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 16:26:39

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O alicate, a vela, as cinzas

Dia desses um homem de moto, uniformizado, com capacete e balaclava, chegou à porta da casa da Rua 31, onde morava uma feliz família composta por um casal, duas filhas (uma de 7 anos e outra de 3) e um bebê na barriga da mamãe. A missão do uniformizado: cortar o fornecimento de energia da humilde residência por falta de pagamento. O provedor da família, em momento de desemprego, ganha a vida e sustenta os seus com um trabalho noturno e consegue, com muito sacrifício, levar o “dicumê” pra casa.

Mas a missão dada precisa ser cumprida, caso contrário o homem de uniforme se transformará também em um dileto desempregado. Sem ao menos conversar com ninguém, o empregado da concessionária puxa o alicate e desfere o golpe nos fios e, abruptamente, interrompe o fornecimento e deixa a todos sem energia. Sem remorso, sem consideração, sem empatia, cumprindo sua ordem de serviço, sai em disparada para outro corte.

Não dispondo dos recursos necessários para pagar a conta e ter o fornecimento restabelecido, a família perde os seus congelados descongelados, passa vergonha perante a comunidade e baixa a cabeça sem ter muito o que fazer. À noite, quando a escuridão tomou conta da casa e o pai saiu em busca de trabalho, o medo se instaurou nas meninas e na dona de casa. Para conter esse medo do escuro, duas velas foram acesas.

A luz do pavio na cera é fraca, mas suficiente para aplacar o pavor das crianças. Sem opções de lazer em casa, todas dormem. Mas a vela decide pregar uma peça sem graça. Ela cai e inicia um pequeno incêndio. Elas dormem. Afinal, dormir é uma forma de não ver a escuridão. O fogo, silenciosamente, começa a se alastrar pelo quarto. Sorrateiramente, as chamas se espalham pelo cômodo, que servia como refúgio do medo do escuro e agora se transforma numa fogueira cruel.

A mãe, de súbito, ao sentir o calor das labaredas malignas, levanta-se e, no ímpeto, sai em busca de água, de ajuda, de qualquer coisa que a acorde daquele pesadelo. O desespero toma o lugar do racional. Um misto de pavor e senso de urgência confunde as ações da mulher.

As crianças ficam no quarto.

Sozinhas.

Indefesas.

Inertes.

Mortas.

Carbonizadas juntas. A mais velha sobre a mais nova, como se, na sua inocência, estivesse protegendo a irmãzinha.

Nenhum sopro.

Só os gritos lá fora.

Só gritos…

Era uma vez uma história bonita de duas irmãs e sua família.

 

*Crônica baseada em fatos reais, ocorridos na noite do dia 16 de janeiro, no mutirão do conjunto João Alves Filho, município de N. Sra. do Socorro, em Sergipe.