ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 14:03:28

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Galo cantou fora de hora (I)

O dia começou a anoitecer. O céu mesclava-se de vermelho e dourado. Lentamente, o sol deixava-se tombar nos braços da escuridão. Mamede Rocha e seus apaniguados tinham mexido e remexido o sertão, veredas e caminhos, mas não deram conta da formosa flor e do seu raptor. Afinal, o sertão era pródigo em veredas e caminhos, que, tortuosos, mais pareciam labirintos, onde Minotauros vagavam nas noites de assombrações. Com os cavalos esbaforidos, suados e cansados, tiveram que pernoitar ao relento, fogueira acesa para espantar cobras e outros bichos impertinentes. Pousaram debaixo de uma maria-preta. Arranjaram gravetos e cavacos para a fogueira. Comeram nacos de carne moqueada e requeijão, farinha e água de cabaça.

Por onde andariam os fugitivos? Dariam com eles, fosse como fosse, fosse onde fosse. Um pai que se respeitava e cuidava dos seus, não poderia deixar impune um sujeito que se fazia malfeitor ao desonrar uma família daquele jeito, raptando uma moça donzela, ainda mais uma menina de dezessete anos de idade. Mamede não conhecia bem o sujeito, a não ser por uma única vez que esteve na sua casa de secos e molhados, herdada do pai. Este, o pai, ele o conhecera. Era homem de bom proceder. Mas, aquele moleque, haveria de receber uma dura lição. Casar, casaria. Ou o sangraria como se fazia com um porco ou um bode.

A noite encheu-se de estrelas. Grilos estridulavam. Aves noturnas chilreavam. Muitas eram as vozes da noite. Com Mamede estavam seus três filhos, dois sobrinhos e três aparentados. Dormiam. Ou pareciam dormir. Mamede, não. Uma voz lhe pedia cautela. Outra voz lhe pedia vingança. Vingança? Cautela? Como um pai, naquele estado, poderia ter cautela? Mas, vingar-se, tirar a vida do raptor lhe repararia a honra? Casar os dois era o que deveria ser feito. Embora, casamento de pessoas fugidas, era para ser feito no silêncio, sem alarido, sem festa, sem nada. Uma vergonha! Casamento de fugidos era uma vergonha, mas tinha que ser. E seria. Ou as cabras não dariam leite. O sertão já estava encharcado de sangue. Um a mais, se fosse o caso, não faria nenhuma diferença. A terra seca estava acostumada a beber sangue de gente ruim.

Francisco Pedrosa de Barros era o nome do raptor. Rapaz de dezenove anos. Cuidava dos negócios da família, como filho mais velho, desde os quatorze anos. Foi-se fazendo homem de tino e retidão. Conhecera a formosa flor, Rosana Maria, quando a mesma fora à sua loja, acompanhando a mãe. Os olhos de ambos de encontraram no azul do encantamento. Ela baixou a vista, ele insistiu. Ela tornou a olhar. O coração dele descompassou. O dela, talvez. Talvez, não; com certeza. Ele o sentiu. Para o amor desabrochar como uma flor de mandacaru, que, bela, explode na rudeza do caule espinhoso, basta um átimo. Aconteceu. Mas, tinha um “porém” muito grave a separá-los. Muito grave para os conceitos do sertão.

O raptor e a raptada ganharam o mundo antes do nascer da madrugada. Todos dormiam, exaustos dos furdunços daquele dia. Por volta das onze horas, após combinações com olhares e gestos desapercebidos pelos demais, Rosana Maria estava destrancando a taramela da porta da cozinha, pé ante pé. E lá estava ele. Francisco tinha deixado o irmão e um empregado de confiança, que estava com a família, desde que o seu falecido pai montara o negócio de secos e molhados. Cavalos à espera, bem fornidos e bem selados. Os dois cães da casa foram silenciados com bons pedaços de carne. Tudo muito preparado.

Enquanto Mamede Rocha cismava, os outros roncando, Rosana Maria estava no povoado Quixabeira, na casa do major Tibúrcio Amarante, padrinho de batismo de Francisco. Um homem de respeito não raptava moça para não a proteger em casa de família, de gente de bem. Assim o raptor o fizera. O major Tibúrcio e Dona Clarinha, sua esposa, eram pessoas conceituadas em todo o sertãozão do Acari. Ali, a formosa flor estava em segurança, no cuidado e no respeito. Dali só sairia para a igreja, depois que Francisco se acertasse, pela voz respeitada do major, com o pai da moça. Da conversa, do pedido da mão da moça, cuidaria o major.

Na manhã seguinte, o sol a pino, cavalos e cavaleiros minando água, e bem empoeirados, Mamede Rocha apeou em frente à Casa Comercial Novo Horizonte. Dois filhos o acompanharam. Os demais ficaram montados. Adentraram. Armas nas cinturas, à mostra. Os fregueses, na maioria mulheres, assustaram-se. Por trás da escrivaninha, ao lado da registradora do caixa, estava Francisco. Calmo, ele se levantou. Ia falar, mas foi interrompido pelo pai da formosa flor.

– “Você é um homem ou um rato? Quantas casas de família você já desfeiteou? Onde está Rosana Maria? Sabe que a sua vida acaba de não valer uma casca de pau, uma folha seca arrastada pelo vento”?

Um dos filhos de Mamede Rocha, Rodrigo, o mais novo e o mais atilado, sacou do revólver, apontou para Francisco, e disse: – “Ninguém vai desonrar a casa do meu pai”! Naquele instante, Dona Maria Cristina, mãe de Francisco, entrou na loja. Ao ver o moço de arma em punho, gritou “Meu Deus”!, e caiu.

Observação: Para compreender este texto, deve-se ler o anterior, publicado aqui, no Correio, semana passada.