ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 14:03:15

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Galo cantou fora de hora (II)

A Casa Comercial Novo Horizonte, em regra, vivia cheia de fregueses. Estabelecimento sortido de um-tudo que se referisse a secos e molhados. Naquela manhã de terça-feira, não foi diferente. As pessoas que estavam mais próximas do caixa assustaram-se com a arma em punho do irmão da formosa flor, Rosana Maria, que estava sob os cuidados da família do major Tibúrcio Amarante, na Quixabeira. Porém, o moço raptor não se deu por avexado. Como sempre, muito calmo, só sentiu o coração bater mais forte quando viu a mãe, Dona Maria Cristina, desmaiar.

Duas mulheres acudiram a pobre mãe, que, por certo, pensara no pior, em relação ao seu amado filho, que desde a adolescência, quando o pai se fora, vinha assumindo os destinos da família, dela e dos outros três filhos, tocando como gente grande todos os negócios que o pai deixara, desenvolvendo-os a contento, como talvez nem o pai soubesse fazê-lo. Todavia, tão logo Mamede Rocha viu a arma na mão do filho mais novo, deu-lhe voz de comando, como somente um pai de respeito sabia mandar. Prontamente, o rapaz guardou a arma na cintura. O olhar do pai para o filho era de severa repreensão. Ainda não era chegada a hora de uma providência atutanada. O filho procurou chão nos pés e não achou, tal foi a rispidez na voz do pai.

Dona Maria Cristina começou a refazer-se do desmaio. Abanaram o seu rosto. Um copo com água foi-lhe servido. Enquanto a mãe era socorrida, Francisco pediu licença ao pai de sua pretendente raptada. Achegou-se para ela, dizendo: – “Mãe tá tudo bem. Não há de ser nada, não. Tudo vai se resolver na santa-paz de Jesus. Tenha fé, mãe”. Voltou para dar satisfação a quem ele considerava seu futuro sogro.

Àquela altura, a calçada da loja estava em rebuliço. Alguém tratou de chamar o delegado, que estava, contudo, numa caçada, lá pras bandas da mata da Mão da Onça. Mas, o cabo Gerônimo prometeu ir à loja. Não apareceu. Ficou na bodega de Tonho Ceguinho, bebericando um vermute com vodka. Meter-se com os Rocha, não era tarefa para ele. Se o tenente lá estivesse…

– “‘Seu’ Mamede, o senhor e seus filhos façam o favor de entrar aqui, no escritório, pra gente conversar. Eu sei que o senhor tá desapontado, mas vai me entender, com a graça de Deus”.

Mamede Rocha, bruto como um tolete de quilo e meio, fuzilou Francisco com o olhar, o mais duro que ele já o fizera e o mais ameaçador que o rapaz jamais o vira. Os dois filhos se entreolharam, em sinal de desaprovação ao convite. Porém, o pai os conteve e disse: – “Fiquem vocês aqui. Eu me agaranto. Quero ouvir o que esse bostinha tem a me dizer. Eu vou me acalmar um pouco, ou a minha raiva vai aumentar de vez”. Pigarreou forte como o ronco de besouro mangangá.

Francisco e Mamede Rocha entraram na saleta que servia de escritório. Antes, o raptor pôde ver que a mãe estava se restabelecendo, acompanhada por algumas freguesas, além das duas que a acudiram. Tudo parecia bem com ela. Mais pessoas se aglomeravam na calçada. Os dois filhos de Mamede bufavam, mas contidos. Sabiam como se comportar diante de qualquer ordem do pai. Para isso foram criados, e bem-criados. Lá fora, montados, estavam o terceiro filho de Mamede, seus dois sobrinhos e os três outros parentes. Agoniados, atentos, para qualquer providência que se fizesse necessária. Todos armados. Todos destemidos. Eram os Rocha, duros como pedra, não só no nome de família.

A Quixabeira não era longe da cidade. Coisa de menos de meia-légua. Um primo de Francisco, sabedor do rapto e de onde a formosa flor estava, teve, assim que os Rocha chegaram, o tino de avisar ao major Tibúrcio. Cavalo ligeiro, corrida desabalada.

Dona Maria Cristina, sentada, pediu para ver o filho. As mulheres a aclamavam. Tudo parecia estar bem. Francisco e o senhor estavam palestrando no escritório. Ficasse calma. Rezasse para que qualquer pensamento ruim daqueles homens fosse desterrado de seus corações. No entanto, uma mãe não abandonava sua cria, fosse em qual situação fosse. – “Eu quero ver meu filho”, ela disse. Meio zonza, levantou-se e foi-se equilibrando, segurando nos objetos, balcões e estandes espalhadas pelo amplo salão da loja. Passou entre os dois rapazes, filhos de Mamede. – “Licença, meus filhos”. A porta do escritório estava entreaberta. Ela a empurrou. – “Tá tudo bem com você, meu filho”? Francisco levantou-se. – “Um momentinho, ‘seu’ Mamede”. E disse à mãe: – “Não se preocupe, mamãe. Eu estou tendo uma conversa amigável com este senhor. Não haverá de ocorrer nada demais. A senhora fique tranquila, minha mãe. O seu filho é homem de respeito. Vou só contar ao pai de Rosana Maria, porque eu fiz o que tive que fazer”.

Dona Maria Cristina, a custo, ouviu o filho e procurou acalmar-se, embora, no fundo, no fundo, o seu coração estava apertado. Retornou.

Com todo aquele movimento, Mamede Rocha mantinha-se embuchado, prestes a perder a paciência. Controlava-se, sabia Deus como. Francisco começou a sua narrativa. Olho no olho, sem piscar, Mamede ouviu o fraseado do rapaz. Todos estavam agoniados. Os filhos de Mamede e os demais acompanhantes, os de dentro e os de fora da loja. A multidão formada na calçada e nas cercanias esperava o desfecho da situação. A qualquer momento, ouvir-se-iam tiros, gritos e choro.

Não se passara uma hora e eis que, a bom galope, chegaram o major Tibúrcio, o moço que o fora dar aviso e mais uma boa cabroeira. Cercaram os Rocha, que estavam fora da loja. Cavalos resfolegando, alguns empinando, um alvoroço. Armas. Muitas armas.

 

Observação: Para compreender este texto, deve-se ler os dois anteriores, publicados aqui, no Correio, nas duas semanas passadas.