ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 14:07:43

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Galo cantou fora de hora

“Galo cantou fora de hora, moça solteira vai-se embora”. Era um dito popular muitíssimo popular mesmo nas bandas do sertão do Acari, longe de tudo que respirasse um arzinho de civilização. Sertãozão largado na malvadeza das secas que o assolavam de quando em quando. Sertãozão agoniado, onde homens de sangue no olho e pelos nos buracos das ventas não arreliavam à toa. Sertãozão afogueado, onde se tinha apurado tino para a honradez, e homens acostumaram-se a matar por três motivos: cachaça, terra e mulher. Homens daquele sertãozão jamais mataram mulheres. Matavam outros homens se tivessem o despautério de mexer com as mulheres alheias.

Uma desfeita a merecer os bofes arrancados de um sujeito, era carregar mulher solteira, para deixá-la ao Deus dará. Carregou? Casou, no padre e na papelada do cartório. Fora disso, era morte na certa. Costumes antigos, que dos mais antigos vinham, sem tirar nem pôr. Ninguém ousava descosturar o que fora descosturado no antanho. Modos de vida que varavam os tempos, de forma inalterável.

No Canto da Onça, lugarejo que mais parecia um calango a arrastar-se penosamente sobre a areia escaldante do verão, uma flor majestosa abriu-se no jardim de ervas daninhas e de troncos retorcidos, que era a vida humana por ali. Homens e mulheres de rudes feições e de rudes modos de viver. A majestosa flor tinha o nome de Rosana Maria, filha de Duarte Rocha, dos Rochas esparramados por muitos cantos daquele Sertãozão: do Espinheiro, do Rastro do Boi, do Macaco Trepado, da Lagoa Seca, dos Jerimuns, da Cobra D’Água. Os Rochas eram uma família tão grande, quanto tão unida. Mexer com um Rocha, era mexer com uma casa de azougados marimbondos. Um enxame deles cairia em cima do atrevido que ousasse tocar num lá deles.

Um acompanhamento de Santo ocorreria da casa de Mamede Rocha para a capelinha do Canto da Onça, que se dizia fora erguida por Antônio Conselheiro, na sua descida para a Bahia, no começo da República. Era o anualmente repetido acompanhamento da imagem de São Pedro, o das chaves do céu, que Dona Clarinha, mulher de Mamede, fazia em louvor do seu avô e do seu pai, ambos falecidos, Pedro um e o outro também. Era, há anos, uma festa a arrastar gente de todos os sertões e das cidades mais próximas, que, a bem ver, distavam, no mínimo, oito ou dez léguas, as mais de perto. Mas, era uma festa. Zabumba e pífaro não faltavam. Nem alargado foguetório. Nem cantorias de ladainhas das mais antigas. Naquele ano, todavia, uma novidade: o padre Anacleto Rocha, sobrinho-neto do pai de Rosana Maria, que dava freguesia no Monteiro dos Rocha, cidade fundada por um antepassado dos Rocha, nos idos de 1850.

Tarde de domingo. Depois de muito chamego, que começou às 5 da manhã, com alvorada, a manhã toda de comilança e bebedeira, eis que o padre Anacleto, há dois anos fora do Seminário, e já em acalentada missão na Paróquia de Santo Estêvão, em Monteiro dos Rocha, moço de acentuada figura, devidamente paramentado, pôs-se à frente do cortejo, que começava a ser formado.

Quatro rapazes levavam ao ombro a charola enfeitada por flores já em estado de início de emurchecer. Nela, a imagem de São Pedro. Um dos rapazes, era novato. Não era dali, como os demais, todos da família de Rosana Maria, um irmão e dois primos, um deles caído de xodó e bem-querer pela flor majestosa daquele Sertãozão. O novato era um amigo do padre Anacleto Rocha, colega no ensino primário e que, desde cedo, assim como Anacleto, aspirava a vida sacerdotal, mas dela se afastara quando o pai falecera, tendo ele 14 anos, e tivera que se dedicar, como filho mais velho, ao cuidado dos negócios paternos, que se dividiam em casa de comércio, padaria e fazendas de gado.

O cortejo do acompanhamento arrastou-se em passos miúdos e vibrantes cantorias, sem faltar o estrondo dos foguetes de resposta, soltados no intervalo de cinco em cinco minutos. Um vento frio acompanhava o cortejo. Era fim de junho. O inverno estava no auge. Como que por encanto, naquele domingo não choveu. O tempo estava nublado, mas não caiu um pingo de água. São Pedro devia estar colaborando com a festa em seu louvor. A lama, porém, cobria toda a estrada. Lama avermelhada. Sapatos, botinas e alpercatas atolavam-se. Nada, contudo, que impedisse o avanço do acompanhamento.

Noite. A festa para São Pedro, o acompanhamento festivo, tinha sido um sucesso. E como por ali se dizia, festa acabada, tabaréu na estrada. Na casa de Rosana Maria, todos se recolheram antes das nove da noite. Exaustos. Pouco demorou, para o galo no poleiro soltar o seu grito, alvoroçando os outros galos. Danado de galo, que cantou fora de hora.

Dia amanhecido. Dona Clarinha foi acordar as duas filhas, Rosana Maria e Estela Maria. Atravessou o longo corredor da casa, passou pelo quarto dos meninos, pelo quarto onde estavam hospedados o padre-sobrinho-neto e o seu amigo. Bateu à porta do quarto das meninas. Logo, Estela Maria acudiu à batida e perguntou: “Mãe, Rosana já levantou”? Dona Clarinha, depressa, correu toda a casa e o quintal. Cadê a flor majestosa? Fez alvoroço. Gritou por Mamede. A casa inteira e a vizinhança mais próxima entraram em estado de alerta. O padre Anacleto acordou. Estava sozinho no quarto. Vexame.

Dona Clarinha bem percebeu uns olhares furtivos entre o amigo do padre e sua bela filha, quando foram à cidade fazer compras na loja dele. Eles fugiram na calada da noite, da madrugada, sabia-se lá! O padre sentiu-se em maus lençóis. Ele levou consigo o amigo raptor de Rosana Maria. “A culpa é minha”, pensava. Mamede Rocha aliviou a aflição do sobrinho-neto-padre. “O senhor padre não tem culpa nenhuma. Não foi sua intenção. Deixe estar, meu sobrinho e padre Anacleto, que disso cuido eu e ao meu jeito”. Mamede Rocha e outros parentes fizeram-se nas armas. Selaram os cavalos e ganharam o mundo.