ARACAJU/SE, 18 de maio de 2024 , 16:40:07

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Liberdade de expressão, fake news e o discurso de ódio

Ao tomar conhecimento da prisão, do suplício e da execução na roda das tormentas de Jean Calas, acusado falsamente de ter matado o próprio filho em Toulouse, apenas pelo fato de ser protestante e não professar o catolicismo, o grande filósofo Voltaire escreveu uma obra lapidar em defesa da liberdade de pensamento e de crença, batizando-a de “Tratado sobre a Tolerância”. Nascia em 1763 o primeiro documento defendendo a liberdade de pensar e expressar publicamente seus posicionamentos.

Posteriormente diversos outros iluministas passaram a sustentar que a liberdade de pensamento e expressão compõem o rol de direitos naturais do homem, sendo positivados na Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos (1789), que afirma: “a livre manifestação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, sob condição de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”.

Na história evolutiva das democracias pode-se assegurar que quanto mais democrático um governo, mais arejada sua Constituição e mais livre uma nação, maior será a liberdade de pensamento e de expressão e o pluralismo de ideias.

A nossa Constituição Federal de 1988 expressamente assegura a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX), a liberdade de cátedra (art. 206, II) e a liberdade de informação jornalística (art. 220).

A liberdade de expressão nunca foi e nem pode ser absoluta, encontrando limites claros no próprio texto constitucional, devendo-se impedir o uso de manifestações lançadas no intuito de ofender à honra, imagem e intimidade das pessoas, estimular a prática de crimes, agredir a integridade física ou disseminar discursos de ódio.

A questão ganha especial atenção e atualidade com a sociedade da hiperconexão. Vivemos uma rápida transição passando do homo sapiens (que sempre buscou o conhecimento, respeitando a ciência e valorizando as artes) para o homo zappiens (cidadão virtual, que sabe zapear e utilizar várias tecnologias digitais ao mesmo tempo, mantendo forte interação nas redes sociais).

Esse fenômeno foi potencializado no Brasil com a rápida integração da população que, munida de um smartphone, passa a ser usuário de várias redes sociais ao mesmo tempo (Facebook, Twitter, Instagram, Telegram, Tik Tok, dentre outras), sendo que quase todos os usuários se posicionam sobre vários assuntos, sempre apresentando “aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Em um contexto de polarização política como o que vivenciamos nos últimos anos, intensificou-se o acirramento no uso das redes sociais e a liberdade de expressão passou a ser usada como escudo legitimador de uma suposta “liberdade de agressão”, sendo difundidas inúmeras informações falsas, criminosas e ofensivas, tudo com a complacência das famosas big techs (maiores empresas de tecnologia do mundo).

Esses grandes conglomerados com base em uma suposta proteção de dados e observância de termos de uso deixam de cumprir ordens judiciais, passam a desrespeitar as autoridades constituídas e mesmo diante de postagens levianas, preconceituosas e mentirosas, mantém no ar referidas ofensas. A grande questão a ser enfrentada é a seguinte: a liberdade de expressão respalda referida situação?

Nesse contexto surge a necessidade, ainda, do combate as fake news (que possuem um poder devastador e podem matar) como no caso das inúmeras mentiras lançadas no auge da pandemia do Covid-19 sobre a eficácia da vacina e utilidade de determinados medicamentos ou ainda, notícias falsas que atentam contra a democracia (como a divulgação em pleno período eleitoral de que as urnas eletrônicas mantidas pelo TSE são objetos de fraude, mesmo sem a apresentação de qualquer prova). Existe liberdade de expressão que justifique a divulgação de mentiras?

E ainda: pode-se em nome da liberdade de expressão permitir a existência de grupos ou células que disseminam discurso de ódio nas redes sociais, ofendendo minorias com postagens de conteúdo nazista, racista, misógino, homofóbico e absolutamente preconceituoso?

Evidente que não, eis a resposta possível e cabível, sendo que referidas posturas merecem ser prontamente reprovadas, responsabilizadas e reprimidas. Combater a desinformação, a apologia ao crime e o preconceito não é censura. A livre manifestação do pensamento não alberga direito de produzir e difundir fake news, de caluniar, injuriar, difamar, ameaçar e, muito menos, de atentar contra a própria liberdade de expressão, contra a democracia ou contra o Estado Democrático de Direito.

Diante da necessidade de regulamentar a matéria, passou o parlamento brasileiro desde o ano de 2020 a debater o tema, sendo aprovado no Senado Federal o PL 2630/2020, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados. Referido desenho de lei foi rapidamente apelidado por alguns grupos de “PL da Censura”.

Ao observar quem são os políticos contrários à aprovação de referido Projeto de Lei (a exemplo do ex-presidente da República e vários deputados federais e senadores que já foram condenados por propagarem notícias falsas), todos apoiados nesta batalha pelas big techs que não desejam regulamentação, não esperam prestar contas, não querem perder engajamento e lucros gerados por este novo modelo econômico ligados a um capitalismo tecnoglobal, concluo que o PL deve ser aperfeiçoado e aprovado, não vislumbrando em referido projeto lei qualquer tentativa de imposição de censura.

Infelizmente existe um longo apelo para a propagação de mentiras, escândalos, debates rasos, ofensas, teorias da conspiração e discursos de ódio, gerando engajamento nas redes, sendo que quanto maior o número de likes, tempo de conexão e exposição de uma “notícia”, maior o lucro dessas empresas que não se importam com liberdade de expressão ou com a verdade, estão mesmo preocupadas em aumentar seus ganhos, escravizando uma geração que não consegue viver afastada das telas e têm nas redes sociais a principal fonte de informação (ou desinformação).

A internet não pode ser uma terra de ninguém, sem lei e sem consequências para aqueles que difundem mentiras, ofendem e disseminam o ódio, provocam danos à sociedade e atentam contra a democracia.

O que é crime fora das redes, deve ser crime nas redes sociais. Os inimigos da regulamentação almejam em nome de uma pseudoliberdade de expressão continuarem impunemente disseminando a mentira e ofendendo minorias sem sofrer as consequências jurídicas por esta conduta.

Acaso Voltaire estivesse vivo em nosso meio, a quem atribuem a célebre frase “Posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la”, que em verdade é de autoria de sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall, defenderia o intransigente respeito à liberdade de expressão dentro de um contexto em que impera à verdade e o respeito às minorias, combatendo fake news e os discursos de ódio, protegendo a democracia e o Estado de Direito.