ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 5:57:50

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Erundina, a dúvida

O pé direito de Erundina apresentava uma curva, que a impedia de caminhar com firmeza. Atribuía-se a uma picada de cobra ao calçar um sapato, quando ainda jovem. Se verdadeira a versão, que nunca chequei, deve ter sido um réptil pequeno, que, ao ferroá-la, deformou-lhe o pé, ficando terrivelmente torto, voltado para baixo, e, pelo que me lembro, a parte, que tocava no chão, a lhe dar apoio, era o rosto retorcido do pé. Daí a muleta, para o deambular lento e diário.

Era uma autêntica índia, cabelo liso, face morena. Lavava roupa, e, ao que parece, nessa condição, teria trabalhado para a família de mamãe, em velhos tempos, no sítio de vovô Aristides, mantendo a ligação pelo resto da vida. Mexia também com macumba, pelo que ouvia.

Morava sozinha em um pequeno espaço perto do Açude Velho, dentro da geografia de minha infância. Casa de barro, sem nenhuma divisória, o fogão era uma trempe num canto, acredito que dormindo no chão ou em rede. Falava alto, praticamente gritando. Se o pé torto lhe proporcionou permanente sofrimento, foi recompensada na velhice com uma pensão, circunstancia que lhe permitiu comprar um rádio e mantê-lo sempre ligado, podendo ouvir, diariamente, o programa de Reinaldo Moura, que adorava. Bote adorava nisso. Sem luz elétrica em sua casa, as despesas maiores se limitavam a compra de pilha para o rádio funcionar. Era sua companhia.

Nesse ponto, uma vez, década de setenta, me lembro bem de Erundina toda arrumada, vestido de festa, passando lá por casa, em uma manhã de sábado. Tive a curiosidade de saudar o inusitado fato, recebendo como resposta que ia ao Cine Santo Antonio assistir ao programa de Reinaldo Moura ao vivo, no que deve ter sido a sua última, ou, talvez, a grande alegria na vida.

Quando a morte se anunciou, Erundina confiou a papai o seu último desejo: ser sepultada no Cemitério das Almas. Desejo cumprido. Acho que morreu hospitalizada em Itabaiana mesmo. O rádio foi doado a uma senhora que tomou conta dela nos últimos dias. Do pequeno terreno, não sei o destino. O mais nada valia, se destinando ao lixo. A carteira de identidade ficou lá em casa no meio dos papéis de papai. A dúvida que hoje me assalta, passado meio século de seu óbito, é se sua muleta foi colocada na urna funerária. Ou se perdeu a serventia.

Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras