ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 3:19:53

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Papai: o bom humor presente

Já no declínio físico, a insuficiência renal ditando seus passos e retirando-lhe as forças, papai transformou a cadeira de balanço, em frente à televisão, em ponto predileto. Lia, via televisão, cochilava, recebia visitas. Uma delas, que sempre aparecia, cujo nome não me vem agora à mente, filha de dona Bela. Ela chega, se senta, e antes que mamãe apareça, papai lhe pergunta se tinha notícias da mãe. Ora, dona Bela já tinha falecido há alguns anos. A filha, espantada, calada até mamãe se fazer presente. Então, volta-se para mamãe e afirma que Jubal estava broco. Papai escuta calado, a fisionomia de quem a assertiva não era sobre ele, ou, ficando de boca fechada, a senhora ia pensar que ele perdera mesmo as faculdades mentais. Era preciso representar bem o papel, e ele, nessas ocasiões, o fazia com perfeição.

No hospital, nas sessões de hemodiálise, sabendo que a vizinha era de Laranjeiras, indaga-lhe se ainda morava lá. Com a resposta positiva, vai além: se poderia lhe fazer um favor. Pois não, a vizinha responde. Então, quando se encontrar com o dr. Bragança, diga que mandei lembranças. A vizinha se espanta. Ora, o dr. Bragança é morto há muito tempo. Papai faz cara de espanto. Então, me dê lembranças ao padre Filadelfo. A vizinha, novamente, alteia a voz com a explicação que o padre também já tinha morrido. Papai vai a última cartada: que desse lembrança a d. Zizinha. A vizinha já não manifesta espanto. Apenas resolve de modo bem  prático. Só indo ao cemitério, bato nas covas e digo que o senhor mandou lembranças para todos os mortos. Papai ouvia calado e de boca fechada continuava.

A doença não lhe tirou o humor, nem o sapecar aqui e ali um apelido. A médica, que dava plantão no período da tarde, na sessão de hemodiálise, ganhou um. Rosto redondo, um tanto volumosa, recebeu o apelido de Rolinha empapada.  Tampouco perdeu a mania de registrar as mortes que lhe chegavam ao conhecer, costume de muitas décadas. Os passos arrastados, a caneta tremendo na mão, e, ainda assim, os inscrevia. Os óbitos derradeiros, em outubro de 1989, último em que viveu o mês inteiro.  Em novembro, nenhum registro. O único, aliás, no dia 5, foi o dele mesmo, que, pesarosamente, na mesma noite, no velório, eu anotei.