ARACAJU/SE, 27 de abril de 2024 , 8:20:12

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A mesa e o que dela se colhe

 

Tento, numa foto imaginária, me localizar na mesa, no almoço ou no café à noite, e não consigo. A foto não existe, nem há como retroagir no tempo para captar todos os cinco em torno da mesa, que, aliás, do que me lembro, era quadrada. Papai ficava de costas para a rua do oitão (a casa era de esquina). Eu, encarando o poente. Bosco, de frente para papai. Alba e mamãe, voltadas para mim. O quinteto estava formado. Tenho a leve lembrança que eu me utilizava de um tamborete, de fácil manejo, que lá em casa fazia parte do mobiliário.

É desse tempo que papai já se deleitava comendo com as mãos. Feijão no prato, lá vinha o banho de farinha, do arroz, da carne e da respectiva gordura, e ele, ia mexendo e remexendo, para lá e para cá, até chegar ao ponto certo. Então, fazia um bolo com a mão, levando-o ao pires, onde o molho de pimenta já estava pronto, – duas ou três pimentas amassadas com o talo seco da abóbora, misturadas com caldo do feijão -, ali molhando sua obra de arte. Se fartava.

O molho era de sua exclusiva fabricação, como exclusivo era também o seu uso. Nenhum da gente sentia, à época, qualquer atração pela pimenta. Mamãe, nem pensar, além do que comer com as mãos era hábito que não fazia parte do seu cardápio, incompatível com seus gestos lentos e medidos, e a saúde não era lá tão firme, a ponto até de não comer feijão. Ainda hoje não sei onde ela arranjava tanta disposição para o trabalho que desenvolvia na casa, cozinha e na máquina de costura, dividindo seu tempo com todas as tarefas de dona de casa – a maioria das vezes, sem contar com uma ajudante – e de costureira, com relativa freguesia.

O silêncio imperava, salvo nos dias de pirão de osso, quando a filharada se manifestava com o prato na mão para receber a gordura que escorria do miolo do osso, papai com martelo na mão, o osso seguro com pano de prato, e o colesterol – que ninguém sabia o que era, nem o nome ouvia – escorrendo para o pirão no prato. Mamãe calada, se servia de galinha com arroz.

Queria ter uma foto de um almoço desse ou, outro que fosse, da família reunida.  Não há. Nessa aridez de escombros, um pé de saudade nasceu, onde jogo água, a crescer com o tempo, e, eu, com as minhas lembranças, mantendo-lhe sempre vivo, na tentativa de não nunca deixá-lo morrer.