ARACAJU/SE, 26 de abril de 2024 , 23:22:39

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Violência sexual, aborto e ética médica

Um dos assuntos mais discutidos na imprensa nacional nos últimos dias foi o aborto autorizado pela justiça em decorrência de estupro contra uma criança de 10 anos, vítima desde os 06, do seu tio.

Notadamente um tema que deve ser analisado por vários olhares, porém sem perder em nenhum deles a questão da violência sofrida por uma criança e a lei brasileira. Os desdobramentos que assistimos beira a esquizofrenia ideológica e a intolerância que somente aumentam e estigmatizam a vítima que não pode se defender em nenhum momento, nem do agressor covarde do abuso sexual e nem dos radicais religiosos e ideológicos.

A legislação brasileira autoriza o aborto em três situações: quando há risco de morte da gestante, no caso de violência sexual e quando o feto é anencéfalo. São exceções à norma penal que criminaliza quem faz, induz e auxilia o aborto, como está no capítulo dos crimes contra a vida do Código Penal.

Isto não significa dizer que o aborto é obrigatório. A mãe pode livremente optar em não ter a gestação interrompida assumindo os riscos, salvo em caso de emergência médica quando o aborto for necessário para evitar a morte da mãe.

No caso do Espírito Santo o contexto é especial. Uma criança de apenas 06 anos passa a ser abusada sexualmente pelo tio e aos 10 descobre-se grávida. Uma criança com vários órgãos ainda em formação, inclusive o reprodutor como o útero, trompas e ovário. Uma vítima do medo que todo o abuso de criança causa e da imaturidade psicofísica. A família decide pela interrupção da gravidez autorizada pelo poder judiciário, e uma horda de insensíveis à dor de uma criança e de sua família humilde invadem a casa para “julgar” e “condenar” a decisão de abortar, ainda que motivados por suas convicções religiosas, convicções que não autorizam o cometimento do crime de invasão de domicílio e de violência contra uma vítima de abuso sexual que é protegida pela legislação da infância e da adolescência.

Não bastasse a insanidade e intolerância quase que medieval dos arautos contra o aborto, uma outra horda de insensíveis se apresenta em nome de partido político sob o manto da bandeira do conservadorismo e usando as redes sociais violam mais uma vez a legislação brasileira de proteção a criança e ao adolescente e divulgam a identidade e o local onde a vítima se submeteria ao procedimento médico, e para lá foram, como cães famintos, agredir a vítima com gritos de “assassina” e outros que prefiro não escrever.

Perdemos a sanidade. Porém, o pior é que se desconfia que profissionais médicos teriam contribuído para esse teatro de horrores ao divulgar o prontuário da vítima para que tudo isso ocorresse. Com certeza, é caso de falta ética grave a ser apurado pelo respectivo Conselho Regional de Medicina, sem prejuízo da apuração pela polícia judiciária de crimes perpetrados também pelo mesmo fato.

O profissional de saúde não pode confundir a ética pessoal e religiosa com os deveres médicos e as leis do país. Não ameniza a sua responsabilidade penal e ética a alegação de que sua conduta foi motivada por sua religião.

Esse caso deve servir de exemplo para retornarmos ao mínimo civilizatório onde o respeito as leis e as pessoas nos tornem dignos de sermos chamados de pessoas humanas.